domingo, outubro 09, 2005

Poder de síntese

É verdade, eu assumo: deixei vários assuntos penderem esta semana. E fiquei pensando em como fazer para incluí-los todos aqui, sem escrever umas 80 laudas de texto (será que em texto eletrônico podemos falar em "lauda"?). Ora, ora, o jornalista precisa evocar o seu poder de síntese e passar a mensagem com clareza e economia, né mesmo? Pois então vamos lá:

De novo o cenário: até na Criação ele se mete

Parece que o Teatro Municipal do Rio assumiu de vez, nesta temporada, a opção pelo cenário. E no caso do poderoso balé "A Criação", essa opção não poderia ter sido mais infeliz. Na verdade, foi um pesadelo. Num espetáculo de concepção coreográfica vibrante, intensa e que, por isso mesmo, precisava imensamente de todos os espaços e possibilidades para crescer, destacou-se mais uma vez quem? O cenário, ou a intenção de um cenário, traduzida na projeção, numa tela gigantesca bem no meio do palco, de aquarelas de Francisco Clemente.
Ora, já houve outros espetáculos que compuseram cenário com projeções. Foi o caso de Romeu e Julieta, mas daquela feita foi um acerto: as projeções em tela escura, no fundo do palco e contrastando com os dois planos da cena, davam destaque aos bailarinos, à coreografia e à trama.
Em "A Criação", a projeção em tela quadrada tornava os bailarinos pequenos demais, quase insignificantes, a despeito do seu esforço e competência para desenvolver a coreografia. A iluminação não os ajudou em nada: a projeção, aliás de gosto duvidoso, além de não contribuir para o entendimento da proposta, parecia um desmesurado totem acima do bem e do mal, a condenar os pigmeus ao fogo eterno.
Quando a colaboração com um artista plástico ajuda e enriquece a obra, não há o que objetar; mas desse jeito, está difícil conviver com intervenções que dificultam a vida dos artistas.
Sorte que o Balé do Teatro, com suas estrelas e o corpo de baile, não está nem nunca esteve aí para brincadeira. Todos incorporaram o poder da música de Haydn e a força da coregrafia de Uwe Scholz e brilharam de verdade. As palavras do corpo foram mais eloqüentes do que a pirotecnia. Destaque, na noite do dia 30 de setembro, para Cecília Kerche, impecável como sempre, e Bruno Rocha, que aliou à fantástica técnica um sentimento incrível. Sem esquecer Vitor Luiz, Wellington Gomes, Márcia Jaqueline, Norma Pinna, Rodrigo Negri, Reginaldo Oliveira, Renê Salazar e o sempre irretocável corpo de baile.
Um apelo ao diretor artístico Fauzi Mansur e à direção do teatro: urge segurar a onda de artistas plásticos e confiar na boa, velha e sempre competente cenografia. Que tem lá suas estrelas, ah isso tem, mas costuma respeitar os artistas em cena.

Márcia Coragem Haydée


Aliás, por falar em Teatro Municipal, meu aplauso à grande profissional que é Márcia Haydée, eterno orgulho dos brasileiros. Na noite de 5 de outubro, ela reuniu toda sua coragem e parou, literalmente, o espetáculo do Balé de Santiago a poucos minutos do início. O motivo? Problemas com os canhões seguidores. Problemas reais, evidentes para a platéia, que ela confessou ter enfrentado desde a véspera, sem solução. Diante de um Municipal lotado, Márcia pediu desculpas mas disse que só continuaria quando os canhões fossem consertados.
Admirei sua hombridade: é claro que ela não poderia deixar que a técnica pusesse a perder todo o seu trabalho e investimento na versão de "Carmen" que idealizou para a companhia que dirige. Isso independentemente da felicidade ou não da produção, em alguns momentos até questionável; mas todo profissional dentro de um teatro do calibre do Municipal, desde o diretor até o servente, precisa se conscientizar do seu papel. O show, apesar de tudo, deve continuar.
O protesto sincero e firme da estrela, ainda que criticado por alguns, surtiu o efeito esperado e, em meia hora, lá estavam acesos, lépidos e fagueiros, os três canhões seguidores que há um dia e meio mal funcionavam. Reparo, diga-se de passagem, bem rápido.

Festival do Rio

Com arrepios de felicidade experimentei, nas últimas duas semanas, as delícias de entrar num cinema ao meio-dia e só sair quase à meia-noite, com a derrière quadrada mas a alma lavada. O Festival do Rio, entre mortos e feridos, salva-se inteiro! Aliás, é a salvação dos cinéfilos, pois nos traz a doce ilusão de que há cinemas, e muitos, na cidade, sempre cheios, com lugares para as melhores fitas (fitas, sim!) disputados a tapa nas bilheterias. E filas de cinco, seis horas para conseguir um passaporte para assistir a, pasmem, cinqüenta filmes!
As animadas sessões de meia-noite tinham cheiro de conspiração, no clima anos 70 que nos fazia achar que salvaríamos o Brasil pela arte. Assistir a um filme potencialmente revolucionário era uma atitude política obrigatória para todos os universitários que se consideravam parte da esquerda, contra a ditadura e ligados, de alguma forma, aos movimentos estudantis ou populares que sobreviveram aos anos de chumbo.
Nem adianta discorrer sobre as minhas preferências: prefiro mesmo é falar do Festival, com tudo o que ele desperta num público variado e diversificado, que tem em comum a paixão pelo cinema.
É um momento excelente para lembrar das muitas salas de exibição aniquiladas pelo poder econômico, e que há tão pouco tempo faziam a nossa alegria em tempos de festivais: os recém-falecidos Jóia e Espaço Leblon, o Rian, o Pax, os Cinemas 1, 2 e 3, o Bruni Copacabana, outros tantos na Cinelândia que conviviam em harmonia com o querido e felizmente preservado Odeon, mas que foram demolidos ou viraram igrejas.
No Festival do Rio, os deuses do cinema fizeram a festa da ressurreição e mostraram que o coração do carioca precisa, desesperadamente, de filmes nos quais pensar, com os quais sonhar, com os quais compor a identidade de sua paixão pela sétima arte.
Que venham os próximos 400 e tantos!

A terra treme

A fúria de 2005, no que toca a desastres naturais, tem sido imensa e destruidora. E o saldo, triste demais. Após o Katrina, o Rita e o Stan, temos agora Paquistão, Caxemira e Índia imersos em dores incuráveis, angústia e agonia para salvar o que ainda resta.
Na Flip 2005, Salman Rushdie afirmava que escreveu o livro "Shalimar, o equilibrista" para que as pessoas tivessem uma idéia de como era amorosa e pura a vida na Caxemira que ele conheceu na sua infância e que, vítima de disputas sangrentas entre a Índia e o Paquistão, acabou conquistada e varrida do mapa. Pois dessa vez varreram mais. Aliás, "aspiraram" o que ainda podia restar daquele mundo: o epicentro do terremoto que chegou a atingir 7,6 na escala Richter foi justamente lá, na Caxemira ocupada.
Com saldo de milhares de mortos e prejuízos incontáveis, os países atingidos clamam por ajuda, que está chegando lenta e difícil por causa da inacessibilidade das áreas atingidas. Muita dor para um mundo combalido pelo efeito avesso da globalização, disputas de poder e uma pobreza cada vez maior. Falta justiça até na natureza, devastada e, por isso mesmo, alterada em seu curso.
Será que não dá para alguém parar para pensar em construir alguma coisa, melhorar alguma coisa, em vez de ficar só pensando em subjugar, dominar e conquistar?
Tanto se distrai o rei das coisas essenciais que acaba nu - ou, como agora, submerso ou soterrado.

terça-feira, outubro 04, 2005

Adeus à favorita

"Ela é fã da Emilinha
e do César de Alencar
dá um bote no Cauby
pra depois desmaiar
Pega a Revista do Rádio
e começa a se abanar!"


Desde que o mundo é mundo, as gerações se lamentam sempre que um pouco do seu mundo começa a ir embora para dar lugar ao novo. E logo vem alguém a rotular: "Saudosismo! Bobagem!". Uns concordam, outros não; eu, mesmo sentida, às vezes devo admitir que, de fato, nada é para sempre mesmo.

Mas há coisas que, apesar de muitos pesares, se mantêm vivas dentro das culturas. Não é que o nosso Brasil seja lá tão rico nessas raridades, mas ainda guarda algumas permanências que emocionam.

Uma delas é o fã-clube da Emilinha Borba, de sempre grata lembrança e sorriso brejeiro, estrela que gerações e gerações aprenderam a admirar. Ao ver hoje as comoventes cenas do velório e do enterro da eterna Favorita da Marinha, não pude deixar de me emocionar com a melhor lembrança que guardo dela, traduzida no imenso amor que seus fãs de todas as épocas sempre lhe dedicaram.

Já não me lembro mais quando foi, mas lá se vão pelo menos uns 25 anos. Um belo dia eu, apaixonada por carnaval e ratazana de todo tipo de espetáculo que acontecia entre o centro da cidade e o final do Leblon, resolvi assistir a um show na Sala Funarte, com Emilinha Borba e Jorge Goulart. Nó repertório, claro, só as marchinhas que embalaram minha infância de coração trepidante, ao som das baterias e ao sabor do cheiro de lança-perfume importada que, naquela época, ficava mesmo só no ar - e dava às ruas de minha cidade um aspecto de realeza, ainda que diante de monarcas de lata com seu séquito de índios, tirolesas, baianinhas e piratas.

Na bilheteria, espanto-me ao saber que só tem lugar no chão. Topo a parada e vou me sentar bem lá na frente, quase rente ao palco. Logo ao entrar, não posso deixar de observar a platéia povoada por doces senhoras como a minha mãe, minha avó, as primas de minha avó, todas sem dúvida egressas, via túnel do tempo, dos auditórios lotados da Rádio Nacional das décadas de 40 e 50.

Em pouco tempo, a sala está que já não cabe uma mosca. No meu cantinho, puxo conversa com dois entusiasmados senhores que não economizam detalhes de sua rica história de fãs; penalizados com minha total ignorância sobre os momentos mais cruciais da vida da estrela, tratam logo de me atualizar. E nos poucos minutos que antecedem o início do espetáculo fico sabendo tudo, mas tudo mesmo, que se passou com Emilinha Borba nos últimos quarenta anos.

O entusiasmo dos dois artistas, que desde a infância me acostumei a ver no Almoço com as Estrelas do Aérton Perlingeiro, aqui se confunde com o entusiasmo da platéia, que não desdenha uma letra sequer; todos cantam todas, gritam, aplaudem, festejam. E eu me sinto feliz por participar, sentir de perto essa força.

"Como, você nunca falou com ela? Coitada!!! Ah, mas isso não pode ficar assim de jeito nenhum!", diz um de meus novos amigos. Súbito, no auge da Chiquita Bacana, eis que sou erguida pelos dois até, pasmem, a altura do palco, para apertar a mão da Emilinha! Do alto de sua baiana de prata, a bela me estende o braço recoberto de pulseiras e oferece a mão e o sorriso. Um tanto ofuscada pela euforia, percebo as serpentinas e confetes no ar, o movimento das dançarinas ao fundo, quase como em câmera lenta; atrás de mim, os aplausos e os gritos continuam.

Satisfeitíssimos, meus companheiros me descem e o show continua. Alegria pura e sem vaidades, o ritmo velho conhecido das marchinhas renovadas, esperançosas de viver para sempre no coração de quem canta, seus males espanta, Colombina, onde vai você? Eu vou dançar o iê-iê-iê! Emilinha toda prosa, nostalgia cor-de-rosa, muita, muita gente feliz.

Na saída do teatro, meus agora amigos para sempre fazem questão de me levar, Cinelândia adentro, até o ponto do ônibus que devo pegar para Laranjeiras. No caminho, apontam para o último andar do prédio do Amarelinho e dizem: "Lá em cima é a sede do nosso fã-clube. Tem todas as faixas de Favorita da Marinha, fotos, muitas coisas. Ah, e todo mês nós fazemos um jantar em homenagem a ela! Sempre que está no Rio, ela faz questão de prestigiar!".

Isso sem falar nos presentes, inúmeros e freqüentes, com que os fãs sempre fizeram questão de mimá-la. "O único que ela não aceitou foi uma grande cama de casal", explica um deles. "O marido, na época, não concordou", suspirou o outro.

Democráticos, elogiam Marlene. "Não temos nada contra a outra, claro. Somos amigos dela também", concedem.

Desde esse dia passei a acreditar que o fã-clube da Emilinha, como todo bom fenômeno sociológico, devia ser estudado. Tema de tese de mestrado e doutorado.

Mais recentemente, uma matéria do Jornal Hoje mostrava Emilinha, cheia de energia, vendendo e autografando seus CDs na Cinelândia. "Aqui vocês compram direto da fonte e ainda ganham o autógrafo!", brincou, lembrando a falta de espaço, nas gravadoras, para as boas e velhas marchinhas. Achei lindo, corajoso, a cara dela.

Hoje, ao ver a mesma Cinelândia tratá-la praticamente com honras de estado, enquanto seus fãs lotavam a praça e cantavam sua tristezas nas letras de seus sucessos inesquecíveis, senti que o mundo ainda pode ser bom, que ainda é possível cultivar lembranças que, de tão doces, tornam-se alento para a vida inteira. Ao largo da família e dos amigos, anônimos aos milhares, os rostos marcados pelo tempo e alguns até com dificuldade de caminhar, retribuíam a Emilinha toda a alegria e inspiração que ela lhes trouxe. Se esse Brasil que fez de Emilinha Borba uma estrela de gerações ainda está vivo e é capaz de chorar cantando, em uníssono, na sua despedida, então ainda podemos ter esperança.

domingo, setembro 25, 2005

Curtas de domingo

Apolônio de Carvalho

No momento da despedida, emocionam as lembranças do velho comunista, um dos poucos heróis sinceros cuja memória podemos evocar sem medo de errar. Alguém que lutou pela justiça acima de tudo, acima até mesmo da própria nacionalidade. E que acreditou, com vontade, até o fim. História feita apenas de beleza, verdade e um amor muito grande. Gostaria de tê-lo conhecido além das páginas da história, mas de todo modo reverencio sua memória com a gratidão de ter, como brasileira, um exemplo de coerência a respeitar.

As histórias de seu desassombro e ternura, seu eterno romance com a francesa Renée, que o seguiu ao Brasil para a vida inteira, o carinho dos dois filhos, que souberam seguir-lhe o exemplo, a reverência de um país inteiro nos instantes finais - discreta e profunda como foi a sua vida - nos mostram que dar a vida pelo sonho e pela fé nos homens, como ele, valeram (e muito!) a pena.

Estrada de terra para o Oscar

"O Quatrilho" é um excelente filme sob todos os aspectos. "Central do Brasil" é um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos.
Ambos concorreram ao Oscar. Ambos perderam para filmes menos talentosos.
"Dois filhos de Francisco" é um bom filme, mas sobretudo uma das maiores bilheterias do cinema nacional. Só isso já diz algo sobre ele - que, apesar do sucesso e do marketing pesado, em nenhum aspecto se compara, de longe sequer, aos dois filmes citados acima.
E foi escolhido por uma comissão para representar o Brasil na corrida dos filmes estrangeiros por uma vaga no Oscar.
Agora, é esperar para ver qual a matéria que pavimenta a estrada para a Academia: os lucros, um regionalismo que pode passar por exótico ou a qualidade das produções. Se for uma das duas primeiras, pode ser que passe.
O cinema brasileiro já esteve melhor na foto, quer dizer, na película...

"Arigó", do Rio à Índia

Cinema de animação feito no Brasil, por brasileiros, e com tempero de novos talentos revelados é uma raridade nesses tempos de mídia. Pois este é o caso do curta "Arigó", produção de sete minutos realizado pela Usina de Cinema do FanCine, organização não-governamental fundada em Volta Redonda.
"Arigó" é o nome de uma ave de arribação bem brasileira. É também o apelido, entre carinhoso e pejorativo, dado aos peões de trecho que construíram a CSN, em Volta Redonda, em plena Segunda Guerra. Daí o nome do curta, escolhido por unanimidade pelo próprio time de criadores.
O projeto foi resultado de uma grande parceria que envolveu o Fundo Nacional de Cultura, a Coordenadoria de Educação do Médio Paraíba 2, o FanCine e a prefeitura da cidade. Além do filme, um estudo cartográfico e antropológico amarra as origens de Volta Redonda aos fatos mais marcantes de sua história. Tudo na produção foi obra e graça dos jovens artistas, assistidos por um time de profissionais da pesada.
Essa história toda saiu da cabeça e do coração de Fatita Celes, cinéfila e curadora de festivais internacionais, que fundou o FanCine para pôr uma câmera na mão de gente talentosa.
"Arigó" será exibido no Festival do Rio no dia 30 de setembro, com direito a debate com a turma de realizadores. Em novembro, brilha no 14º Festival Internacional de Filmes Infanto-Juvenis, em Hyderabad, na Índia. A coroação perfeita para um vôo de sucesso que passou pela 8ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a competitiva do CINE PE 2005 (Festival de Audiovisual de Pernambuco), o Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte e a Mostra Infanto-juvenil de Florianópolis, só para citar os convites deste ano.
"Arigó" é um santo de casa que, sem mídia ou ações mirabolantes de marketing, está fazendo milagres importantes por aí.
Atenção, pessoal da animação: fiquem de olho em Volta Redonda. Lá tem gente aprontando com a maior qualidade!

sábado, setembro 24, 2005

Impunidade sempre em alta

Já não basta a constante vergonha que nos assalta todos os dias, ao abrir os jornais e acompanhar todos os absurdos vai-não-vai e toma-lá-dá-cá da crise política, sem nada - ou quase nada, à exceção da recente malufada enjaulada - de conclusivo acontecer na prática.

Alguém viu alguém devolver dinheiro aos cofres públicos deste país? Viu? Onde??? (Sem dúvida estou tendo hoje o meu dia de Graúna).

Pois agora isso é pouco. Ainda temos de assistir a vergonhas muito maiores. A primeira página do Globo de hoje - coluna mínima, mas vá lá, é primeira página - informa que o Supremo Tribunal Federal, por meio de habeas-corpus, acaba de colocar em liberdade um assassino condenado a 228 anos de prisão: o coronel Mário Pantoja, responsável pelo massacre de 19 pessoas, entre agricultores e familiares, em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. É, e com direito a despacho veemente do ministro Cézar Peluso, que concedeu ao réu o privilégio de "recorrer em liberdade".

Uma de minhas grandes frustrações com Fernando Henrique Cardoso, intelectual e teórico, ídolo das médias-esquerdas da minha geração, sempre foi a sua incapacidade de agir com firmeza e responder com energia às grandes crises nacionais, durante o seu governo. Uma delas, para mim a mais emblemática, foi o massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Enquanto todo o país assistia, atônito, às barbaridades cometidas pelos policiais comandados pelo dito coronel Mário Pantoja, o presidente balbuciava desculpas em cadeia nacional. Nem sequer o governador do Pará foi afastado, que dirá o alto comando da barbárie.

Na página 13, a matéria - que engordou para duas colunas, ainda que imprensada entre manchetes sobre o referendo do desarmamento e o resultado da dupla sena - cita trechos do despacho do ministro. "A garantia constitucional não tolera execução de sentença condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito em julgado (ou seja, quando se esgotam todas as possibilidade de recurso." Tal rigor com os direitos de um cidadão, ainda mais um assassino condenado, não só me espanta como me faz lembrar o caso da jovem mulher que foi presa em São Paulo por tentar - notem bem, tentar - roubar um shampoo e um condicionador em uma farmácia e, mesmo sem ser julgada, passou um ano e sete meses na cadeia e perdeu até uma vista em função de torturas. E só saiu por causa da determinação de uma advogada diante do absurdo da situação, que batalhou até conseguir que um promotor de justiça se compadecesse da pobre. Mas o ministro Cézar Peluso, cujo salário é pago com o dinheiro do contribuinte brasileiro, vai mais além em seu despacho: "Não há maneira de o sistema jurídico reparar a privação da liberdade sequer mediante o expediente sub-rogatório de indenização (que, aliás, não se sabe quando é paga)."

Ou seja: um assassino, responsável pela morte de 19 pessoas inocentes, inclusive crianças, tem o direito de recorrer da sentença em liberdade e merece ser "reparado" pelo tempo que passou na prisão até agora. É isso mesmo ou será que eu entendi mal?

Quem indenizará a jovem que perdeu a visão de um olho e mais um ano e sete meses de sua vida na prisão, sem julgamento, por tentar roubar produtos de beleza numa farmácia?

Que indenização, por maior que seja, poderá amenizar a dor dos que perderam seus parentes no massacre de Eldorado dos Carajás?

Que indenização poderá restituir à alma brasileira a confiança na Justiça, se o maior órgão do nosso judiciário, o Supremo Tribunal Federal, age com tamanha condescendência para com assassinos condenados?

Não podemos esquecer, não devemos esquecer o que vimos - eu e todo o Brasil - acontecer em Eldorado dos Carajás. Nossa Justiça deveria defender e proteger a população, independentemente de cor, raça ou classe social. É isso o que diz a nossa Constituição, que todos juramos honrar. E é isso o que o ministro Cézar Peluso acaba de ignorar, quando concede habeas-corpus a um assassino condenado.

É o mesmo que rir na cara de todas as vidas humanas perdidas no massacre, rir na cara da dor dos parentes, rir na cara de todos os brasileiros que desejam banir, de uma vez por todas, a impunidade crônica que inibe o crescimento da nossa dignidade e cidadania.

Quando o Judiciário chega a este ponto, ao mesmo tempo em que o Executivo e o Legislativo se envolvem num dos maiores imbroglios da nossa história recente, dá muita vontade de sair gritando por aí. Como é que nós, a sociedade atônita, vamos dar conta de restituir ao nosso país o direito de existir, funcionar, legislar, educar, sonhar?

quarta-feira, setembro 21, 2005

Esses jovens tresloucados e talentosos

Da primeira fila da platéia me vem um flashback paralelo: vejo-me há mais de vinte anos, num tímido teatro de um colégio na Tijuca, assistindo a uma montagem de "O despertar da primavera", encenada por um grupo de jovens cheios de garra e vontade: Maria Padilha, Fábio Junqueira, Daniel Dantas, Miguel Fallabela, Paulo Reis... Neste mesmo momento em que na cabeça rola o vídeo-tape daquela galera que deu certo de verdade, olho para o palco onde Carolina Portes, Fabricio Belsoff e Keli Freitas desenrolam, com graça e competência, sua versão fulminante de "Esses anos estúpidos e perigosos", do canadense George F. Walker, e sinto a mesma coisa: um perfume de futuro bom.
"Esses anos...", que no original atende pelo contundente nome de "Tough!", ou seja, dureza, é barra, é f..., é uma história simples de adolescência. Simples? Claro, pra quem nunca passou, ou já passou mas esqueceu, ou viu acontecer com o filho do vizinho. Mas nunca para os protagonistas, ou seja, os adolescentes metidos em confusões que envolvem sentimento, presente confuso e futuro em pânico. O texto é ágil, fotográfico e muito teatral. Funciona como uma luva na montagem agressiva e de uma velocidade quase digital, com marcações despojadas, práticas e que evoluem muito bem em cena. A composição de cenários, figurinos e uma iluminação contida, mas eficaz, é importante para construir o clima, apoiado por uma ótima trilha sonora.
Mas o que seria de tudo isso sem os atores, claro, os rostinhos iniciantes, mas flamejantes, que transformam boca de cena em mágica e poesia? Fabricio Belsoff é perfeito como o confuso jovem que se alterna entre o carinho pela namorada, a vontade de viver outras aventuras e a súbita notícia de que ela espera um filho seu; Keli Freitas, a namorada, é a própria fragilidade em cena e, no segundo seguinte, a imagem da determinação; e Carolina Portes, a melhor amiga, dona de um humor de nuances quase sombrias, alterna com extrema habilidade o seu radicalismo entre a fidelidade absoluta à amiga e o ódio à raça dos homens, concentrado no namorado da outra, a seu ver pivô de todos os infortúnios.
Todos expressam bem a profusão de sentimentos que assolam a alma adolescente, todos ao mesmo tempo: hormônios demais, carências demais, questões demais - e sérias! - a decidir toda hora. É como viver a vida toda num instante, várias vezes por dia. E os três atores parecem talhados para a história: conseguem ser dramáticos e engraçados, crianças e adultos, frágeis e extremos, bobos e profundos - e, o que é melhor: fazem bem o trânsito entre todas essas emoções sem cair no pastiche ou no melodrama. Pesa aí, sem dúvida, ao lado do talento do trio, a eficiente direção de João Fonseca. A tradução tem lá seus pecadilhos, sobretudo no abuso de expressões que simplesmente não são faladas no português e, ao pé da letra, soam falsas; mas nada que comprometa o ritmo geral do texto como pilar da história. Sim, porque há textos que atrapalham o impacto visual do espetáculo. Em "Esses anos...", de modo algum é este o caso; o texto se beneficia do contexto estético e um reforça o outro.
Em nenhum momento o espetáculo de uma hora dá sinais de cansaço, tédio ou desfalecimento; o ritmo é intenso e a interação dos atores, total. Os pequeníssimos detalhes que, vez ou outra, parecem que vão prejudicar, não chegam a fazer barulho. E o resultado é algo verdadeiro, transparente e simples, com cara de adolescente que dá exemplo pros adultos.
Exatamente como aqueles "meninos" que, ainda ontem, depositavam todas as suas fichas no despertar de uma primavera que de fato aconteceu pra eles, como espero que aconteça também para Carolina, Fabricio e Keli.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Uma história de gente

Vou falar de alguém que conheço pouco, pouco ou quase nada além das crônicas de jornal, algumas paixões declaradas - como árvores centenárias, tecnologia, capivaras, frangos d'água - e referências muito carinhosas do Drummond, grande amigo de seu pai, que a viu crescer.

Vou falar de Cora Rónai, com especial emoção após ter visitado seu blog e visto a série de fotos de viagem que vem publicando, com comentários às vezes telegráficos mas sempre poéticos, marcados pelo bom-humor e lembranças.

Em Budapeste, Cora visitou o prédio onde seu pai viveu toda a infância e onde seu avô tinha uma livraria. E tocou de passagem, como o leve farfalhar de uma pena, em dores guardadas na memória atávica de sua família, no horror da Segunda Guerra. Não posso estar na sua pele para imaginar o que ela sentiu ao percorrer o hall de entrada e as belas escadarias e imaginar, como ela mesma diz, como deve ter sido difícil abandonar aquilo tudo de repente e mergulhar no desconhecido. Sem falar nas perdas, é claro, pois seu pai nunca mais tornou a ver os avós, o próprio pai e mais dois irmãos.

Fiquei pensando nessas tristezas, às quais ando particularmente sensível ultimamente. A viagem no tempo de Cora me vez recordar a recente leitura de Ver:Amor, romance de David Grossman publicado no Brasil em 1993, que encontrei entre os saldos da Livraria da Travessa e cujo tema é o holocausto, mas a partir da visão de alguém que não o viveu - e tenta o tempo todo captar, nas pessoas que passaram por aquilo, o sentimento da tragédia.

É uma homenagem desesperada, profunda imersão na reconstrução da alma de quem precisa, acima de tudo, conviver com as marcas e mesmo assim não se tornar vítima, transcender, transformar a vida. E está cheio de histórias belas, fortes, comuns e trágicas como a da família Rónai. O texto, de uma doçura enorme, faz uma ponte para que se possa compartilhar sentimentos com aqueles personagens que, de tão reais, poderiam até morar dentro da gente. Uma onda de solidariedade, sei lá, compaixão, igualdade ou seja lá o que for, me acometeu desde então. Ao contemplar aquelas escadas atravessadas pelo tempo, não pude deixar de imaginar os seis filhos do casal de livreiros (os avós de Cora) correndo pra cima e pra baixo entre o mundo dos livros, o mundo da casa e a rua, com seus sonhos, esperanças e a vida pela frente, sem pressentir o perigo ou adivinhar as sentenças que viriam.

Diante dessas e de outras tragédias, como as tantas que se avolumam no momento presente em todo o mundo, me vem à tona com força um alerta interior para o compromisso que sempre precisamos ter com o futuro da humanidade. É preciso lembrar e relembrar, em atos e convicções, o quão desesperadamente todos nós, humanos, precisamos de paz.

Paz para salvar a gente comum das nossas favelas e das ruas, da faixa de Gaza, de Bagdá e de cada Brasil dentro desse nosso país. Paz para salvar a humanidade dela mesma. Paz como resistência, como uniforme do nosso coração.

Gostaria que houvesse escadarias, como a da família Rónai, por onde pudéssemos subir, cada dia um degrau, e chegar à paz palpável, simples e comum, que a gente tanto precisa.

domingo, setembro 11, 2005

Jóia rara e, agora, vazia

Há duas décadas, Caetano acreditava que, se o deixassem cantar, o mundo ficaria "odara", tudo seria "jóia rara". Nesse interlúdio entre tempos mais românticos e cultura - como pão espiritual de cada dia - mais disponível, natural e profusa, nove cinemas naufragaram em Copacabana, nas águas do irracionalismo ditado por produtos de consumo com pretensões de equivaler à sala escura e, muito provavelmente, da violência que nos rouba, dia a dia, o direito de curtir apaixonadamente a nossa cidade.

O Jóia - peça de resistência encastelada no antigo shopping da Av. Copacabana 680 - acaba de fechar. Aliás, fechou na última quinta-feira, como atesta o Globo de hoje. Cineminha maldito, pequeno, escondido, muitas vezes quente, com eventuais problemas técnicos e alvo de reclamações freqüentes, sem dúvida. Mas foi lá que fui apresentada, em êxtase, à Flauta Mágica de Ingmar Bergman. Foi lá que vi o notável brasileiro Os Mucker, hoje um tanto esquecido. E foi também lá que, mais recentemente, derramei-me diante do dolorido Dançando no Escuro, de Lars von Trier.

Sim, o Jóia era raro, especial. Endereço velho conhecido dos ratos de cinema, todo mundo sabia que podia assistir lá aos filmes cult em fim de carreira, na repescagem. Raramente tinha fila e era um dos preferidos dos idosos das adjacências, por ser perto de tudo, de fácil acesso e com escada rolante. Jóia rara que fez história na vida da cidade e do bairro.

A nota do jornal não me deixa esquecer que o Roxy, hoje, é o único cinema de Copacabana. Parei para pensar e contar os mortos: Cinema 1, paraíso no qual navegamos, eu e minha geração, pelo melhor do cinema europeu de autor; o Ricamar, que pelo menos virou a Sala Baden Powell e se manteve como espaço de cultura; o Metro Copacabana, que ficava pertinho da C & A, na Nossa Senhora do Mesmo Nome; o Art Copacabana, em frente à Dias da Rocha, transformado em triste academia de ginástica para os modernos de plantão, o que me fez odiar para todo o sempre a marca BODY TECH, que perpetrou o crime; o Rian, majestoso em sua bela arquitetura na Avenida Atlântica, ao qual eu chegava fácil, fácil, de 119 - ônibus que eu pegava na São Clemente, cruzava o Túnel Velho e saía na Santa Clara, depois pegava a Constante Ramos e ia até a praia; o Cinema 3, na Raul Pompéia; e o Caruso, inesquecível em suas poltronas de couro vermelho, aclamadas como as mais confortáveis da cidade.

Tinha ainda o Bruni Copacabana, aquele cineminha um tanto acanhado, com ar de abandono, no fundo de uma galeria na Barata Ribeiro, quase Santa Clara, e que foi engolido pela recente expansão da Modern Sound, a melhor loja de CDs e DVDs da cidade. Lembro que ali assisti "A estranha família de Antonia", o filme que derrotou o belo Quatrilho, o primeiro filme brasileiro finalista do Oscar de melhor filme estrangeiro.

(A Modern Sound só está perdoada pela invasão por ter criado, em seus excelentes domínios, um charmoso misto de bar, espaço cultural e palco para a música que ainda resiste na cidade. Um sucesso que merece o nosso respeito.)

Nove salas é uma perda grande. E fica ainda maior se contabilizarmos, bairro a bairro, a derrocada das salas de cinema nas zonas sul e norte do Rio. Entrar no saudosismo barato não ajuda, é claro, mas é preciso pensar no destino da cultura. O slogan de uma conhecida e hoje bem reduzida rede carioca - Cinema ainda é a melhor diversão - ainda fala ao coração de muita gente capaz de gerenciar projetos de sucesso, como o Estação Botafogo, o Espaço Unibanco e o Arteplex, onde o cinema enquanto arte é a filosofia principal, temperada com a competência necessária para manter o equilíbrio financeiro. Isso sem falar nos Cinemark da vida, que asseguram o presente e o futuro do circuitão.

Estamos vivendo a era das lojas de R$ 1,99, das farmácias e dos varejões de roupa pronta. Ah, e como esquecer, também das locadoras e dos home-theaters - sem o cheiro da pipoca da carrocinha se misturando ao sereno da tarde, sem a doce ansiedade do primeiro ruído (rugido?) que silencia a tagarelice da espera e nos faz prender a respiração, à espera do novo? Cinema é cultura de primeira hora, de primeira linha, que transfigura a nossa imaginação e nos dá o poder do movimento, sem muita distinção de berço ou classe social.

O que fazer com uma Copacabana quase deserta de cinemas, que sofre sucessivos baques em sua tradição boêmia, efervescente? As forças culturais dessa cidade bem que poderiam se unir em oferenda aos deuses do cinema e, contra a maré demolidora, buscar um projeto que, equilibrando o cinema-entretenimento e o cinema-cultura, possa contra-atacar essa tristeza de cenário e fazer procriar a tela grande nos corações das atuais e futuras gerações de cinéfilos, formados ou em formação.

Esse novo complexo - já estou eu sonhando! - poderia, inclusive, batizar suas modernas salas com os nomes dos finados Rian, Caruso, Art, Jóia..., o que equivaleria a ressuscitá-los e devolvê-los à terra de onde, afinal, nunca deveriam ter saído.

terça-feira, setembro 06, 2005

Cada vez mais perto do perigo de viver

(da série "Tratado das letras de Parati")

Hoje, arrumando gavetas seculares, encontrei uma página meio amassada, talvez caída de sei lá que livro, com uma foto de Clarice Lispector - aristocrática, enigmática e forte, sempre forte como presença.

É inevitável: sempre que penso em Clarice, lembro do conto "Amor" - e da bolsa com os ovos, tão protegidos e de repente quebrados, coitados, espalhando seu amarelo pela tela da bolsa, esvaindo-se pela saia da personagem, por sua alma e pela calçada.

Um dos primeiros, dentre tantos outros, momentos de Clarice que me marcaram a ferro - e ovo - para a vida, o conto "Amor" fala do instante inexorável do acordar interno, de alguém que de repente se situa no mundo, abandona a casca da conveniência e encara a dor de dentro, o vazio e o precipício, o arriscado no ato de viver.

Na FLIP, que este ano homenageou a escritora, os encontros com Clarice foram marcados pela vertigem que ela sempre provocou - tanto com sua personalidade como com seu texto único. No espetáculo de abertura, falaram os poemas, os contos, os amigos e até os personagens, na pele dos atores que interpretaram uma espécie de versão de concerto de "A hora da estrela". Na mesa 3, "No raiar de Clarice", a escolha foi retratá-la do ponto de vista de amigos e estudiosos de sua obra, de um modo muito acolhedor, que aproximou o mito da platéia.

Marina Colasanti narrou como se fosse um romance a convivência de longos anos com a amiga, desde a descoberta, junto com o irmão Arduíno, do primeiro conto publicado na revista "Senhor" até os últimos anos em que, debilitada, era cercada pela atenção e o cuidado de todos os que a amavam.

Lembro-me de Clarice na antiga TV Tupi, na década de 60, com sua desenvoltura e aguda inteligência, gesticulando e fumando. Tinha uma presença impactante para mim, menina ainda e muito longe de seus livros. Só mais tarde, ao descobri-la em todo seu esplendor e intensidade literários, é que eu teria meios de fazer a conexão entre a enérgica debatedora e a mulher que deu voz ao sentimento mais exacerbado, mais fundo e quase insuportável.

Marina Colasanti diz que, diante de Clarice, havia toda uma reverência, um sentimento de adoração; ninguém abria a boca. Era como se em Clarice alguma coisa pudesse acontecer a qualquer momento. - Ela nunca coube em qualquer realidade, nem mesmo na sua - frisa Marina. - E todo o seu esforço, como escritora, está em buscar o seu outro eu.

"Quero apossar-me do 'é' da coisa." A frase, de Água Viva, me paralisou por meses. Tive medo, constrangimento, desentendimento, aflição - mudei de livro, de autor, de temática, fui e voltei, mas continuava atormentada. Agora, quando ouço de Marina Colasanti uma frase de Clarice - "Eu sou mais forte do que eu" - entendo melhor. Começo a me aproximar, chego quase à beirada e posso me arriscar a compreender.

"Às vezes acordo de madrugada e julgo ouvir o bater das teclas da máquina de escrever de minha mãe. Acostumei-me desde pequeno àquele ruído, às madrugadas que ela varava escrevendo." O depoimento emocionado do filho de Clarice Lispector cabe como uma luva no mosaico de impressões deixadas por essa mulher múltipla, praticamente dona de todas as palavras certas.

Há quem diga que ler Clarice é perigoso; o seu "território" é tão específico que muitos ficaram impotentes ao tentar seguir sua literatura. Clarice trilhou um caminho intensamente "de alma" - e suas obras são como tentativas verbais de alcançar um ponto que sempre lhe escapava, nas palavras de Benedito Nunes.

Mas o que acontece com quem lê a torrente de paixões que se arremessa da prosa de Clarice e sente que não pode fazer nada senão entregar-se, segui-la, intensificá-la acima de tudo? Nesse sentido, não há perigo no encontro. Antes, plenitude e um imenso desafio: sentir Clarice, verter Clarice para suas próprias palavras, intenções e gestos.

Lembro-me agora, de "A mulher que matou os peixes". Clarice cultivou muito o universo infantil, talvez por causa de seu filho, talvez porque amasse as crianças ou tivesse, ela mesma, algo de lúdico e simples em meio ao terremoto interno da mulher crescida. É um livro que qualquer criança entende, sente - e no qual viaja, hipnotizada, com bilhete sem volta.

Para Vilma Arêas, autora de "Clarice na ponta dos dedos", Clarice é intuitiva. Na verdade, ela era um mundo à parte, com tudo do melhor e do pior que o mundo de verdade tem. O incrível e fantástico é que, com essa multiplicidade e por caminhos tortuosos, Clarice entrava sem dificuldade no coração das pessoas e passeava pela alma com uma desenvoltura que podia assustar.

No mundo prático, Clarice não tinha lugar. Não se sentia à-vontade com as lides comezinhas do dia a dia. Ter de escrever para ganhar a vida - crônicas e até mesmo livros - era algo que a angustiava. Mal interpretada às vezes e injustamente taxada de reacionária ou alienada, Clarice tinha seu próprio jeito de interpretar a realidade brasileira. Assim, a pobreza e a exclusão foram temas de "A hora da estrela", enquanto, em sua última crônica, escreveu sobre o bandido conhecido como Mineirinho, assassinado com dez tiros. Envolvia-se, preocupava-se, mas não sabia viver direito num mundo sedento de palavras de ordem. Política, sim, partidária jamais.

Clarice falou como ninguém ao meu coração feminino em "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", uma de suas obras ditas "menores" (Aliás, dessa questão de menores ou maiores, prefiro passar ao largo; existe apenas Clarice, que nasceu na Ucrânia mas criou sua alma aqui, no idioma das nossas contradições). "Uma aprendizagem" é todo intensidade, fervor - e nudez, também, um despir-se de tudo o que é mero, fugaz e incapaz de "ser" completamente.

Na FLIP, Clarice esteve perto, viva, menos mito que poesia. Marina Colasanti contou sobre um jantar que a própria Clarice pediu para ela fazer, num recado transmitido por Nélida Piñon. Ela queria ver os amigos. Marina fez, Clarice chegou "imperial", na definição dela - e logo depois desesperou-se numa dor de cabeça e pediu para ir embora. De nada adiantaram argumentos ou aspirinas. Precisava muito ir. "Tudo é terra dos outros onde os outros estão contentes" - sentenciou. Tudo o que Marina pôde fazer, diante disso, foi pedir ao marido, o poeta Affonso Romano de Santanna, que a levasse.

- Tenho certeza de que ela ficaria muito feliz em saber que, hoje, essa 'terra' é toda dela - concluiu amorosamente Marina.

Em respeitoso silêncio, todos nós concordamos e aplaudimos com o nosso coração selvagem totalmente dominado pela lembrança e pelo mistério de Clarice.

domingo, setembro 04, 2005

Cinco a zero

Domingo de grande decisão, o Brasil praticamente inteiro na frente da televisão: é hora de carimbar o passaporte pra Alemanha, como diz o inspirado comentarista global.

E vencemos com todos os requintes, até direito ao quinto tento no último minuto do segundo tempo. E o adversário, coitado! Nada de gol de honra; é fazer as malas e adeus. Um cinco a zero na veia, um pico de adrenalina para restabelecer o fôlego da confiança, ultimamente tão abalada, dos brasileiros.

Que é bom, não adianta negar. Mesmo quem diz não ligar pra futebol pode sentir o amarelo no ar, aquele amarelão de ouro que tremula na arquibancada, que venta na alma. É uma força nada estranha, um "eu sabia" que, ainda que não tão sabido assim, sai do coração com tanta certeza, com tanta empolgação, que emociona de verdade.

Nos braços dessa alegria, fiquei pensando em como seria bom se ganhássemos de cinco a zero em outras lutas além do gramado. Se a gente derrotasse a fome por cinco a zero, por exemplo - e goleasse de vez, irremediavelmente, essa funesta senhora que insiste tanto em destruir vidas tão importantes para o nosso destino e futuro.

Tenho certeza de que, se déssemos de cinco a zero na porção abjeta da classe política que consegue encher os bolsos com o dinheiro que faria a diferença entre vida e morte de crianças, entre o remédio ou a condenação para um idoso, entre o futuro e uma arma para um adolescente cooptado pelo tráfico, daríamos um golpe mortalíssimo na miséria que se mostra para nós todo dia, abatendo a dignidade de quem precisa e de quem atende.

Precisamos golear as incertezas, as descrenças, as maldades. Tinha de ser cinco a zero também nas mazelas do Rio de Janeiro, de São Paulo, no estado de calamidade a que o nosso sistema jurídico e penitenciário está reduzido. Somos reféns do crime, do desgoverno, de nós mesmos e de nossos medos e preconceitos.

O nosso povo que canta e bem podia ser feliz, mas não é, o nosso povo que dança de um jeito e dança de outro, bem que podia ir em massa atrás desse cinco a zero. Não num espetáculo gigantesco, uma produção para a mídia, mas com passo firme, decidido, fechado com a vontade de mudar. Muito além dos 90 minutos de uma emoção bela, legítima, mas passageira - e no entanto, com a mesma garra, graça, ginga e raça, que é o que não falta por aqui.

Está na hora de profissionalizar o talento pra golear que a gente tem de sobra. A equipe técnica sempre esteve pronta, é só entrar em campo.

O que será, então, que a gente está esperando?

domingo, agosto 28, 2005

Ferocidade legalizada

Por uns bons dias cheguei a acreditar na Justiça brasileira: a aprovação de uma severa legislação para impedir a violência de cães das raças pitbull e rotweiller me fez achar que, afinal, nem tudo estava perdido. Acreditei nessa lei, numa iniciativa que visava claramente a extinção progressiva dessas raças no Rio de Janeiro.

Pois eu estava errada; a Assembléia Legislativa "abrandou" o rigor da lei e permitiu aos "pobres animais" passear a qualquer hora do dia, "desde que com focinheira, enforcador e conduzidos por maiores de 18 anos".

É inacreditável o número de vozes que se levantaram em defesa desses assassinos em série, alegando que o texto da lei legaliza "maus-tratos". Acaso uma criança que faz malabarismo num sinal de trânsito, que dorme na rua, que passa fome e cheira cola na madrugada merece uma atenção dessas? São momentos surreais que me fazem lembrar o engenhoso protesto musical de Eduardo Dusek, nos anos 80: "Troque seu cachorro por uma criança pobre..." Não, eles não querem trocar; aliás, os donos de cães ferozes, na sua imensa maioria beligerantes, acham que seus bichinhos são "incapazes de violência" e invarialmente acusam as vítimas de "provocação". Criança morta em favela, na rua ou por bala perdida é estatística, mas cartão de vacinação de pitbull é sagrado.

Sempre achei que dono de cão feroz tinha de ter porte de arma, com registro e tudo o mais. Bem, nesse ponto a lei concorda comigo; agora todo mundo tem que registrar na Polícia o seu animalzinho de estimação. Já é alguma coisa. Mas ostentar um bicho desses à luz do dia, nas mesmas ruas em que mães passeiam com seus bebês e onde os velhinhos mais modernos fazem suas caminhadas, é demais.

Proponho relançarmos a música de Eduardo Dusek com camisetas, faixas, passeatas e ações de cidadania. Nem que seja para iluminar, com todos os holofotes, o ridículo que é defender pitbull de rico e ignorar a massa invisível de crianças e adolescentes que é engolida a cada ano por estatísticas inclementes, conivência geral e pouco ou nenhum interesse do Estado em lhes dar sequer a perspectiva de um futuro.

Sonoridades no rumo da paz

Tão irritada fiquei com as críticas ao programa de Schöenberg no Municipal que me inflamei a ponto de esquecer, temporariamente, de comentar o imenso prazer que foi assistir à Filarmônica de Israel, sob a batuta de Zubin Mehta.

O maestro me é caro por motivos que vão muito além de sua consagrada competência. Mora no meu imaginário sua presença forte e emocionada à frente do primeiro Concerto dos Três Tenores, nas Termas de Caracalla, em 1990. Aquele momento absolutamente inesquecível, que devolvia um ainda combalido porém bravo José Carreras às platéias de todo o mundo, após curar-se de uma leucemia, ficou guardado no coração, mesmo após o natural desgaste provocado pelas inúmeras repetições da fórmula. Mas Zubin Mehta foi o artífice da primeira - e, em muitos aspectos, única - reunião das vozes mais importantes do mundo, em torno de uma comemoração alegre e pacífica: o futebol, paixão dos três, paixão de muitos.

Na recente entrevista ao Caderno B do Jornal do Brasil, vemos um Zubin Mehta vigoroso, fértil, alegre e com pendores brasileiríssimos para apreciar o sol, a caipirinha e a macumba ("não abro mão!"). Ativo na música, ativo na vida, Zubin Mehta quer reger o concerto que celebrará a paz entre Israel e Palestina, afirma com um sorriso convicto, quase infantil. Bons ventos; a gente merece ver gente incansável, que tem talento para a arte e a cidadania, fazer planos, desenhar futuros que podem ser decisivos. Nos seus muitos anos à frente da Orquestra Filarmônica de Israel, sempre procurou semear a paz ao longo das notas musicais, onde quer que se apresente e seja qual for o repertório. Arriscou Wagner em Jerusalém, com a pretensão de curar feridas com a magnitude da música; hoje, apesar de admitir que foi um erro naquele momento, prova que ainda crê no poder universal e transformador da música, mesmo nos momentos mais difíceis.

No palco do Municipal, a Filarmônica de Israel não decepcionou: não faltaram uma emotividade sutil, crescente e contínua, qualidade verdadeira, talento e esforço concentrado. Um teatro lotado, em suspenso, mal respirava ante o cuidado, a confiança, a certeza de uma equipe que se entrelaça ao seu condutor, guia e mestre e responde com imensa energia e talento ao que se exige dela.

E como se exige! À clareza e suavidade da Sinfonia nº 41 em Dó maior ou "Júpiter", de Mozart, segue-se o angustiado e tortuoso diálogo musical que caracteriza a "Trágica" de Mahler (Sinfonia nº 6 em Lá menor) - que, segundo as reminiscências da esposa do compositor, Alma Mahler, era a obra que mais profundamente o emocionava. Somente uma orquestra perfeitamente madura e profundamente viva seria capaz de executar tão ambicioso programa com um equilíbrio perfeito entre emoção e técnica, como o fez a Filarmônica de Israel. Sem a menor pretensão de analisar as filigranas do desempenho musical, recebo apenas a beleza e a emoção que tomaram conta do meu espírito e inundaram de felicidade os meus sentidos auditivos.

Com o concerto, fiquei mais confiante na promessa de Zubin Mehta para celebrar a paz; afinal, quem constrói milagres musicais como o que tivemos aqui no Rio, no dia 18 de agosto, só pode ser a pessoa certa para dar o tom de um futuro que a humanidade toda quer ver acontecer.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Abaixo a arte, viva o cenário????

Sem a menor vontade de voltar a mencionar o caos mental em que caímos, talvez por influência da crise nacional de auto-estima provocada pelos ventos dircélicos e delubianos, devo dizer que me espanto em verificar que esses sintomas vêm atingindo também a arte. E de forma grave, a tal ponto que até experientes críticos confundem muitas coisas - e passam a louvar o que não acontece em lugar do que acontece.
É meio como naquele recurso de computador em que você move uma forma "para trás" ou "para a frente", dependendo das circunstâncias. E às vezes o que você move para trás pode ser muito mais importante do que o que acaba ficando na frente.

Assisti na estréia ao duplo Schoenberg produzido pelo Theatro Municipal do Rio, composto da ópera Erwartung e do balé Noite Transfigurada. Para mim, foi um acerto em muitos aspectos: o bom-gosto, o refinamento, os intérpretes, a direção, a coreografia, concepção, bailarinos, figurinos e cenário. Na ordem em que aprendi a compreender a cena teatral, a primeira coisa visível aos meus olhos e ouvidos é o artista. Através dele e de seu desempenho é que entram em cena a competência da direção, no caso da ópera, e a coreografia, no caso do balé. Os figurinos complementam, a iluminação realça, o cenário situa.

E nessa produção não foi diferente. Os dois momentos nos trouxeram suas lições de beleza e intensidade, força, sutileza, poesia.

Confesso que o dodecafonismo exige sempre de mim um esforço maior, já que sou mais afeiçoada ao melódico. Mas ouvi com o maior respeito a ópera Erwartung que, embora não empolgue, é carregada de um drama profundo e pungente. A concepção me pareceu sensível, exata. Laura de Souza correspondeu plenamente e conseguiu manter a intensidade, que foi o que mais me prendeu desde o início. Lamentei, como tenho certeza a maioria dos presentes, a falta das legendas. Uma obra difícil como esta, que exige do intérprete um esforço quase sobre-humano, já que a protagonista deve comandar a cena sozinha no palco com sua dor e desventura, teria na legenda um apoio essencial. Aliás, legenda não é uma praxe, algo dispensável em ópera: faz parte da função, do contrato que se celebra entre espectador e obra.

Soube no intervalo que a ausência das legendas foi imposição unilateral do cenógrafo, pois segundo ele desviaria a atenção do "seu" cenário, e aceita sem questionamentos por parte da direção da casa.

Este foi o meu primeiro espanto. Não compreendo, já que o cenário de Erwartung é deslumbrante e sem dúvida nenhuma extremamente valorizado pela iluminação. A legenda, obrigatória, fez falta à compreensão do todo e prejudicou o resultado.
Noite Transfigurada foi, no mínimo, um prazer indizível; impecável na estética, poético no movimento, artístico até mais não poder e de um refinamento a toda prova, o balé criado por Fábio de Mello é novo na maneira de traduzir em formas a sensualidade e a tensão da música. Além disso, valoriza cada dupla de bailarinos em particular, exatamente naquilo em que cada uma tem de melhor. Um grande poema sob medida, sem fragmentações, sem resvalar em mesmices, com beleza romântica e humana ao mesmo tempo. O conjunto masculino que representa a noite, mas que também poderia representar o lado sombrio do coração daquelas quatro mulheres em uma, enquanto permitem assomarem seus sentimentos de dúvida, medo e insegurança, faz uma costura de cena belíssima, com figurinos afinados com as tonalidades da iluminação. São seres fantásticos e, por isso mesmo, as roupas assinadas por Rosa Magalhães fazem questão de sublinhar esse aspecto mágico de um poder que envolve, oscila e circunda a consciência que se debate.

Para mim, foram emoções na medida; enquanto Erwartung me atirou no chão com alguns arranhões, Noite Transfigurada me deu uma oportunidade de arriscar a jornada do herói e chegar a uma espécie de iluminação, mesmo carregando a dor como documento da alma.

Mas o que eu não sabia é que o meu espanto cresceria imensamente nos dias que se seguiram, ao me deparar com as críticas de Roberto Pereira, ontem no Jornal do Brasil, e Silvia Soter, hoje no Globo.

As opiniões de ambos fazem coro em ponto e contraponto. O que as diferencia, basicamente, é a elegância, no caso de Silvia Soter, e o escárnio de Roberto Pereira. Tamanha concordância só fez aumentar o meu leigo espanto, após uma noite de estréia em que a platéia simplesmente não permitia que a cortina se fechasse, tamanha a felicidade coletiva pelo belo resultado. Será que os críticos são pessoas tão acima do bem e do mal que conseguem enxergar monstros onde os pobres mortais da platéia só vêem flores?

De tudo, o que mais espanta - com a devida vênia pelo uso excessivo, esta é a palavra que melhor traduz o meu estado de espírito - é que o cenário seja mais festejado pela crítica do que a obra de arte! Roberto Pereira, inclusive, chega a considerá-lo "sozinho em cena", desprezando solenemente coreógrafos e bailarinos! No Globo, o cenário ganha inclusive uma crítica própria, de Luiz Camillo Osório, que ressalta seu "diálogo" com a música de Schoenberg...

Francamente, creio que um amante de música ou dança jamais pagaria um ingresso para se sentar no Theatro Municipal e assistir a um cenário que dialoga com a essência da música dodecafônica e dispensa a presença de orquestra, maestro, cantores e bailarinos. Ainda que esse cenário seja assinado por um importante artista plástico brasileiro - e que seja belo, sensível e bem executado. Na ópera ou no balé, cenário é um elemento complementar, sem que isso desmereça sua importância. Quando um cenário ganha espaço na mídia e é exaltado acima do conteúdo do espetáculo, alguma coisa está muito errada. E, como testemunha, posso dizer que o erro não está, de modo algum, no conteúdo de uma produção competente e bem realizada, apoiada no talento de gente experimentada e sensível como o maestro Colarusso, o diretor da ópera, Gilberto Gavronsky, a intérprete Laura de Souza, o coreógrafo Fábio de Mello e, meu Deus, bailarinos da estirpe de Ana Botafogo, Áurea Hammerli, Nora Esteves, Sandra Queiroz, Marcelo Misailidis, Vitor Luiz, Joseny Coutinho e Paulo Henrique. Emoldurados luxuosamente, diga-se de passagem, pela iluminação de Paulinho Medeiros.

Senti farpas de maldade na crítica de Roberto Pereira, que não conheço; agulhas espalhadas em várias direções, dando a nítida impressão de querer atingir alvos específicos. Já Silvia Soter foi mais técnica e comedida, objetivando o tema com o suporte da lógica e da técnica. Ambos, porém, apressaram-se em rotular Rosa Magalhães, deixando de captar sua poética construção para os figurinos do balé, em absoluta sintonia com as necessidades de expressão e movimentos. As alusões ao carnaval me pareceram uma tentativa de anular as múltiplas competências da figurinista, como se fosse obrigatório comparar projetos em nada comparáveis.

Na minha felicidade em assistir ao espetáculo e me orgulhar dos nossos artistas, não me preparei para a ferocidade com que alguns podem se dedicar a minimizar o talento e o profissionalismo deles. O que fica é um estranhamento, uma ponta de desconforto e também uma certa revolta, porque, ainda que os textos sejam assinados, ninguém, nem mesmo os autores, pode responder pelo estrago que eles causam. Daí a importância de se assistir, a todo custo, à arte em ação no palco, ainda que essa arte tenha defeitos, pois fatalmente terá qualidades. A arte verdadeira e sincera sempre emocionará o público, pois vale mais que milhões de palavras-agulhas, expressões-dardos ou frases-morteiros soltas ao vento.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Vida que explode

Sergio Britto. Ponto final e inicial. Não vale tentar defini-lo com termos extraídos do catálogo normal do nosso vocabulário. Ver o Sergio em ação é reaprendê-lo sempre, pois nada é e nem pode ser esperado; é um testemunho novo, reinventado, reescrito, reinterpretado com uma autenticidade absolutamente autoral e viva, verdadeira, que não se repete jamais, ainda que um mesmo texto, voz e expressões sejam evocados a cada noite. Tudo o que parece ser igual, na verdade é sem igual. E Sergio Britto, 83 anos e a mais absoluta expressão da vitalidade de corpo, alma e coração, se dá de presente à platéia, aos afortunados por estarem diante dele, a cada dia com a mais absoluta originalidade. E com a generosidade de quem aprendeu a viver tudo de novo, com todas as forças, a cada momento.

Jung e eu, eu e Jung: idéia, texto e arquitetura de grande beleza, mérito dos autores Domingos de Oliveira e Giselle Falbo Kosovski, sem dúvida, mas costurado direto no corpo, na alma, na anima de Sergio Britto. Ou terá sido essa anima a se imiscuir na própria criação, dando-lhe a essência que subverte as palavras de tal forma que as transforma em vida orgânica, numa globulina espiritual que faz tremerem as veias de quem as presencia, como se o próprio sangue não agüentasse ficar preso no corpo da gente? Sergio Britto dividido e multiplicado nas peles do Dr. Jung e do ator Leonardo-Svoba-ele-mesmo que vai vivê-lo, os dois tecidos um à imagem e semelhança do outro, separados apenas por obra e graça de um cênico par de óculos, é a expressão máxima do que seria, para mim, uma definição de "vida". Vida que urge, que teima, que incandesce, cresce, domina, envolve, seduz, distribui-se, alaga, enreda e se doa completamente.

E o nosso Sergio maior - aquele que aprendemos a amar pelo talento, grandeza e peso intelectual na história do nosso teatro - prova mais uma vez que é muito, muito mais que isto. Menino sempre pronto para o novo, o surpreendente, o inusitado, o inimaginável que no entanto o confirma: Sergio nas mãos da vida e a brincar com ela, a dar-lhe voz aqui, voz ali, a argumentar e contra-argumentar com tudo o que é improvável, mágico e belo. E só, inteiro, desarmado diante do enorme, enorme desafio. Sergio é a sinceridade sem disfarces, é aquele que se entrega com tal intensidade a quem quer recebê-lo que acaba fazendo parte de sua alma.

No encontro amoroso com Jung via Svoba, Sergio nos convida e nos leva ao espaço sem gravidade das emoções mais profundas, praticamente exige que abramos nossa alma e deixemos de lado as vidas diárias tão exigentes para
fluir com ele e seus personagens rumo àquilo em nós que quase sempre não ousamos tocar. E súbito as teorias se tornam leves, permeáveis, acessíveis ao coração como um sopro da vida verdadeira que ele solta no ar, pega quem quiser, contamina-se quem estiver pronto e disponível.

Sergio e sua vida pulsante são um tesouro fantástico que absorvemos com uma estranha felicidade, um sorriso avarento de quem descobre de repente que possui ao menos um pedacinho da maior obra de arte jamais concebida, e que pode dispor dela à-vontade mas não pode contar a ninguém, não, não deve, pois quem sabe, Deus o livre, ela pode de repente se esvair e então, como fica o coração?

Sergio Britto, Carl Gustaf Jung, Leonardo Svoba. Nomes novos e eternos para a nossa esperança e um lampejo de felicidade e vida, vida, vida para aplacar a dor dos tempos e nos fazer tomados, num instante único, da sensação de que podemos ser melhores.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Contro-versos

(da série "Tratado das Letras de Parati", sobre a Mesa 2 - Coro dos contrários)

Poema nem de longe inunda a sala,
resvala com algum escândalo
por espaço mínimo,
senta-se para conversar,
mas sem muito ânimo.
Muitos esperam, suspiram
e até conspiram,
mas poema quer nem saber.

Um aplauso mediado se anuncia
mas não eclode,
enquanto a voz do cais
fala em referências.

(Não ouço a música das palavras
no espaço suspenso
onde agora poderiam brincar.)

A moça loura com olhos de boneca
se esvai

pretenso jogo de desdém

e encolhe o verso.

Apenas resta
um bravo navegante
a singrar ventos de Macau
com música, música, sim,
de palavras! Que começam
a chegar de roldão,
e belas, e cheias,
e plenas, enfim,
ocupando o tempo
como vastos véus
de algodão recém-tecido.

(Poema abre um olho só,
mas fecha depressa
e se recosta,
fingindo dormir.)

No espaço escorrido
do tempo quase frustrado
as palavras não se vestem
da festa pretentida.

Poema talvez desejasse voar,
mas de que jeito?
Melhor puxar a cortina,
se houvesse uma,
e dançar
nas pedras da rua.

Um segundo escuro pontilhado de estrelas

"Agora vai ficar tudo escuro, mas em seguida volta", instrui a voz confiável. Espero, mal respiro. O medo silencia e obedece. E de fato escurece, mas - incrível! - há múltiplos pontos coloridos no escuro fugaz. Logo em seguida, minha visão volta, enquanto a cirurgia prossegue. O medo se afasta de vez, e acompanho fascinada o que ocorre à flor dos meus olhos que em breve se verão renovados, livres da permanente dependência dos óculos, por mais "fashion" que possam parecer.

A aventura é quase indescritível. Ao decidir embarcar, escolhi a companhia do Dr. Carlucio Andrade, mais que experiente oftalmologista e cirurgião carioca. Como todo mundo que viveu a mesma situação, tenho certeza, alternei-me entre o temor, a dúvida e a determinação que, no final, se fez maior.

Deitada na cadeira cirúrgica, penso apenas em concentrar-me no meu papel: não atrapalhar. O cirurgião explica com suavidade cada fase do processo. Em contraste com o breve tremor que me assaltava ao vestir as roupas hospitalares, pantufas e touca (um frio irreal que crescia e se tornava quase insuportável), agora sinto-me bem, tranqüilizada e consciente. E assisto ao milagre tecnológico, operado pela mão precisa do profissional.

O olho tudo vê, mas como se fosse o de outra pessoa: não há sensação física, somente uma observação constante, um desfilar de imagens ora firmes, ora desfocadas, guiadas por uma luz permanente, ora verde, ora vermelha, que mantém o olhar cativo e firme. Sinto-me espectadora de mim mesma, não protagonista. Não imagino catástrofes e nem me dedico a pensar no ato cru e material da cirurgia. Só a viagem mágica existe, a contemplação de mundos feitos de caleidoscópio.

"Agora vamos fazer o laser. Você vai ouvir um barulho e tudo vai demorar uns vinte segundos, no máximo."

Esta é a hora em que a minha visão vai mudar para sempre, penso. E continuo a buscar a luzinha-guia, com toda calma, até que o anunciado barulho, nem tão alto assim, silencia. Seguem-se as operações finais, que a voz sempre informa. E o final de tudo, em inacreditáveis dez minutos.

Levanto-me da cadeira e recebo um par de óculos escuros tipo Matrix. Saio caminhando tranqüilamente e sou conduzida até a sala de espera, onde aguardarei um último exame, após uns trinta minutos. Lá encontro os operados que me antecederam e encontrarei, dentro em pouco, os que me sucederão. Instaura-se no ambiente uma espécie de terapia grupal, onde todos riem, aliviam-se das tensões passadas e se contemplam por trás dos óculos iguais, antecipando a felicidade futura de enxergar melhor. Adoro esse momento e deixo-me levar, com os até então desconhecidos que de repente partilham comigo algo especial e único.

Passo pelo exame, sou liberada e sigo para casa. Sozinha, heróica e triunfante como nunca.

No caminho, penso nos vários milagres que vivi - a tecnologia, a competência e humanidade do médico, a determinação interior de vencer o medo e dar um passo adiante. E contemplo esse lado bom da evolução: trabalhar para criar formas de fazer alguém sentir-se mais capaz, como eu me sinto agora. Em mais dez dias, operarei o outro olho e poderei sair de casa sem óculos. De novo, como há muitos anos atrás, olharei de frente para a vida sem anteparos, e conseguirei enxergá-la em suas cores reais ou, pelo menos, nas cores que os olhos da minha alma interpretam como reais.

Estranha e boa felicidade, libertada por um simples e novo olhar.



domingo, julho 24, 2005

Todas as guerras nos afetam

Talvez por um mecanismo psicológico de defesa, temos uma certa tendência a cristalizar nossos sentimentos mais profundos diante de situações de perigo, conflito, guerra. Vivemos em torno dessas situações, sejam elas próximas ou aparentemente distantes, como se elas não nos afetassem, como se tudo acontecesse somente com os outros.

Até presenciar um ato violento, como protagonista ou não. Ver aquela dor passar por dentro do corpo, guardar-se em imagens na memória, um filme que insiste em se reproduzir na tela da consciência.

Ou até ser atropelado e tocado pelo relato de alguém que viveu, ou vive, uma guerra. Nesses momentos, dá-se a ponte entre a humanidade que mora em nós e as situações que ameaçam essa humanidade.

A Flip 2005 provocou em mim umas tantas alterações nesse sentido. O ambiente esteve todo o tempo aberto à exposição de relatos de experiências fortes, não para que fossem vistas como curiosidades, como forma de ampliar nossos insights, mas justamente para nos confrontar com duras realidades que mudam o mundo a cada segundo e sacodem, violentamente, o quintal da nossa alma.

Me lembro de uma cena exibida em todos os telejornais há um tempo atrás, que me marcou profundamente: um palestino e seu filho de uns 10, 11 anos, tentavam passar por uma calçada onde só havia um muro, nenhum lugar para se proteger, com o exército atirando bem à frente. O pobre homem, desesperado, fazia sinais, pedia passagem, tentava dizer "Por favor, deixa a gente passar!" a metralhadoras insensíveis produzindo balas a todo vapor, ao mesmo tempo em que tentava inutilmente proteger, com o próprio corpo, o corpo do filho. E tudo documentado por uma câmera de frente para o crime. As balas não cessam, apesar dos apelos, a criança é brutalmente assassinada e o pai fica muito ferido. O desespero daquela cena jamais saiu da minha memória. No dia seguite, soube pelos jornais que o homem sobrevivera, e me lembro de ter sentido uma enorme dor. Pensei: talvez fosse melhor morrer, numa situação dessas. Uma pessoa comum, pacífica, que só deseja, e não consegue, fazer o que todo pai desejaria num momento daqueles: proteger seu filho de todo mal. E fica apenas com a morte nas mãos.

Anos mais tarde, numa tarde de domingo que se anunciava aprazível no Rio de Janeiro, chego de carro ao Centro Cultural Banco do Brasil, com duas amigas. Ia ver uma exposição de desenhos de Rembrandt. Logo ao saltar, alguém na porta do Centro Cultural diz: "Olha!" Olhei e, a poucos passos de nós, no meio da rua, um homem com uma bala na testa era imobilizado por um policial à paisana que brandia em todas as direções uma pistola a meu ver gigantesca. Apavoradas, retornamos ao carro e nos abaixamos, sem saber o que poderia acontecer. O homem, possivelmente um assaltante (jamais saberemos), morreu na calçada. E o domingo inacabado se esvaiu em tristeza.,

Na Flip, vários depoimentos vieram mexer nessas feridas aparentemente pequenas. E tiveram o efeito de um estranho mas necessário despertar. No Rio de Janeiro, em Jerusalém, em Bagdá, na faixa de Gaza, em Angola, nas muitas favelas brasileiras dominadas pelo tráfico, em Madri e Londres, no Egito e em muitos lugares que não figuram nos jornais, a insanidade destrói vidas o tempo inteiro, por milhões de motivos e nenhuma razão.

MVBill é um rapaz admirável, que se diz salvo pelo hip hop e pelos livros, que descobriu trabalhando numa banca de jornal. O hip hop foi a ponte para vencer a invisibilidade de quem é "preto, pobre, mora em favela e teve uma infância padronizada, com muito trabalho e pouco estudo", segundo suas próprias palavras.
Hoje luta para diminuir o genocídio de jovens pretos e mestiços das favelas por conta do tráfico, mais de armas do que de drogas, segundo suas pesquisas, relatadas no livro "Cabeça de Porco", escrito em parceria com seu empresário Celso Athayde e o sociólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro e alvo de perseguições políticas que o obrigaram, inclusive, a se auto-exilar no exterior.

Com o clip "Soldado do morro", que retratava jovens do próprio tráfico, Bill quis documentar a dimensão da tragédia que condena à morte 100 em cada cem mil adolescentes brasileiros pretos e pobres, estatística pior do que a de conflitos como o do Oriente Médio, por exemplo. Em vez disso, foi acusado de fazer a apologia do tráfico e responde processo até hoje. Vozes em sua defesa? Nenhuma, a não ser a de Luiz Eduardo Soares, que nem sequer o conhecia, mas sabia tudo das artes e manhas entre o aparelho policial e o tráfico. "Quando li sua entrevista na revista Caros Amigos, vi que ele só fez isso pela verdade", emociona-se Bill.

Dos 16 jovens que aparecem no clip "Soldado do Morro", quinze já estão mortos. Rodando o Brasil inteiro para documentar a situação dos jovens reféns do tráfico, MV Bill e Celso Athayde perceberam que a dimensão do problema era muito maior do que pensavam; as mortes continuam, do Oiapoque ao Chuí, e muitas não são noticiadas. Com quase 180 horas de material filmado, Bill admite que o problema está longe de uma solução. No noticiário, ganham espaço as mortes mais "próximas" das metrópoles, mas ninguém fala do problema em termos nacionais. Os jovens filmados falam de sua esperança de mudar, de seus sonhos e dores. Um dos retratados no clip, também assassinado, tinha uma enorme revolta porque a mãe "morreu antes de me levar no Beto Carrero". Seu maior desejo era ser palhaço.

Saída não tem, mas, segundo Bill, "a humildade é o nosso método científico." Dentro de um quadro que parece insolúvel, e a partir do tamanho do abismo, sem arrogância, "talvez a gente consiga inventar um jeito de sair. Porque tem que haver um jeito".

Pedro Rosa Mendes, jornalista português, percorreu durante quatro meses áreas imensas de Angola que não eram visitadas por ninguém e representavam "uma cápsula gigantesca de invisibilidade e silêncio". A missão, realizada por sua conta e risco, era entender o conflito.

Já nos preparativos do que chama de sua "viagem através do vazio literal", Pedro descobriu que ninguém sabia nada do que se passava no país. Munido apenas de sua curiosidade jornalística, Pedro percorreu o território da guerra, que não existe para a economia e nem para o turismo: um arquipélago de vazio onde milhões de indivíduos reproduzem a solidão, isolados de ingredientes básicos da condição humana, como a memória de uma língua, da família etc. Em quatro décadas de conflito, 75% da população angolana tem hoje menos de 25 anos; desses, a grande maioria tem no máximo 15 anos. A guerra primitiva, porém servida pelos mais modernos instrumentos de morte criados pelo homem, deixa atrás de si um imenso rastro de destruição, onde todas as as referências foram cortadas, além de uma vasta legião de mutilados pelas minas terrestres.

Pedro Rosa Mendes fez questão de registrar sua viagem no livro "Baía dos Tigres", para que não seja possível dizer que essas coisas não aocnteceram. E se emociona com a generosidade dos sobreviventes, que reinventam a vida todos os dias. "Numa guerra assim morremos coletivamente, mas quando se chega a inventar a vida nessas condições, já não é uma sobrevida, mas uma vida muito além da morte".

Mas Pedro não se exime da responsabilidade. "Esse esterco humano, gente pilhada de toda normalidade a um nível dantesco, foi produzido por nós." E denuncia o papel financiador das empresas multinacionais que alimentam o conflito para servir a seus interesses.

John Lee Anderson, que conhece bem Angola, concorda que é um dos lugares mais esquecidos da terra. "Saí dali profundamente entristecido e com uma raiva que não sentia há tempos." O jornalista americano faz coro às denûncias de Pedro: "Há pessoas amputadas por todos os lados e sangue nas ruas. O país está destruído, mas o petróleo e os diamantes continuam a sair regularmente, sem qualquer problema." E a história é a mesma em Bagdá: "O maior exército do país é contratado pelas empresas petrolíferas, para proteger o oleoduto."

Nesse sentido, os dois concordam que a lógica de poder em Angola, no Iraque e em Serra Leoa é bem parecida. "Apenas por má fé conseguimos ignorar que as piores zonas de conflito são zonas de pilhagem", comenta Pedro. Angola garante 9% das necessidades energéticas dos Estados Unidos; nos momentos mais drámáticos, quando o conflito matava 1000 pessoas por dia, o comércio de diamantes financiava a Unita com 500 milhões de dólares.

Para ambos, esse tipo de círculo vicioso ocorre sempre que as zonas de conflito são mantidas numa membrana de invisibilidade. Por isso é tão importante escrever e mostrar, revelar todas as cores da tragédia.

Em Bagdá, os ataques a jornalistas se tornaram parte do conflito. E John Lee Anderson vê isso de forma preocupante, porque "a segurança é tão precária, qualquer controle é tão impossível que não se consegue chegar à cidade. Há carros-bomba suicidas e o exército não controla o trajeto entre o aeroporto e o centro de Bagdá. Muitos jornalistas vivem dentro da chamada "zona verde" e o único meio de cobrir é com imagens fornecidas por um dos lados do conflito. "Só se pode sair disfarçado ou à noite. É terrível, pois os jornalistas não são respeitados como apartidários".

John Lee Anderson alerta para o fato de que o Iraque não era campo de batalha do terrorismo, mas agora já é, numa guerra sem piedade. E os jornalistas são perdedores porque não conseguem mais informar: as opiniões são muito polarizadas. Mas mesmo assim, é importante que "não deixem que o conflito perca importância, porque Bagdá ainda é uma capital com 5 milhões de pessoas e teremos um monte de vítimas, diretas ou indiretas. E ser vítima não é uma condição nobre, nem torna alguém uma boa pessoa."

Pedro Rosa Mendes considera que a maior tragédia de lugares como Angola, Colômbia e Afeganistão é que "o conflito torna-se autônomo, despido de toda razão ou ideologia, e essa autonomia é viabilizada pela máquina da guerra, fruto dos interesses econômicos."

Como viver tudo isso, escrever e sobreviver? John Lee Anderson precisa de um período de "descompressão", ao sair de uma zona de conflito. "Eu sentia muita raiva, não podia ir de uma situação a outra assim impunemente. Então, quando saí do Iraque, fiquei uns quatro dias em outro lugar, para me compensar." Apesar das dores, o jornalista acha melhor ter suas feridas "abertas" do que cicatrizadas. "Prefiro ter todas as memórias comigo, para saber onde caminho e onde cai minha sombra."

Para Pedro, é preciso desenhar uma espécie de "fronteira cartográfica" entre aquilo que se vê e o que ocorre em si, para que seja possível refletir sobre a violência e dar-lhe uma linguagem que seja inteligível para quem não viveu a situação. "É preciso colher os espinhos no fim do dia".

Ao longo de sua viagem de quatro meses, que coincidiu com os quatro meses finais da primeira gravidez de sua mulher, Pedro Rosa Mendes carregou consigo a primeira ecografia de sua filha Inês. "Naquele papel tinha mais ou menos a linha do rosto dela no dia da minha partida. Não gosto de andar com retratos dos que me são caros, mas levei a ecografia. A tinta desse tipo de impressão sai com facilidade, e ao longo do tempo parece que se desvanecia, mas ao mesmo tempo continuava lá. E eu tinha que voltar antes que o rosto dela sumisse de vez. Aquela ecografia foi o meu elo com a realidade para a qual eu sabia que retornaria."

David Grossman falou no primeiro dia da Flip, e de certa forma foi ele quem abriu minha "ferida pessoal" sobre conflitos e responsabilidades, com uma constatação totalmente inesperada: "Nós, o povo judeu, temos um passado e tradições, mas não temos futuro. Viver em Jerusalém é como viver numa casa com paredes móveis; você não sabe direito onde está, onde vai, como fazer qualquer planejamento." A sinceridade de seu testemunho me emocionou e chocou, fez pensar e melhorou minha capacidade de ouvir naquele exato instante. Indo além, David insistiu na necessidade de nos colocarmos no lugar do outro, num conflito, mesmo que esse outro seja o "inimigo". Todos têm razões e nenhum tem razão, por isso é preciso combater o radicalismo, a arbitrariedade, a insanidade de parte a parte. É esse o compromisso que ele sempre teve em anos de jornalismo, em suas inúmeras crônicas, ensaios, palestras e em seu trabalho como escritor.

Estamos aí, todos, diante dessa insanidade - tragicamente exemplificada pelo brutal assassinato de um jovem brasileiro, eletricista mineiro de 27 anos e há quase três em Londres, por uma Scotland Yard que, cega pelo medo e pela impotência, o confundiu com um terrorista. Qual é a guerra que não nos afeta? Somos todos responsáveis e temos, como diz MVBill, de 'inventar uma saída', um jeito de nos comprometer, ainda que isso se restrinja a umas poucas linhas num blog, uma crônica de jornal, um livro-reportagem, um lívro-denúncia.

Se temos direito à condição humana, temos de atravessar as barreiras dessa dor e construir alguma coisa, cada qual com sua enxada e pá, mesmo que, em vez de metal, ela seja feita de palavras.

sábado, julho 16, 2005

Concordo em prosa e verso...

(da série "Tratado das Letras de Parati")

... com a jornalista Mànya Millen, em seu artigo "Palavras necessárias", do Globo de hoje: o que ficou da Flip 2005 foram as idéias - apaixonadas, vibrantes, inusitadas, poderosas - que tornam a literatura tão necessária para se viver nesse tempo de contradições.

Longe das críticas e além das pequenezas, o que veio à superfície foi tão importante, atual e imediato que desafia qualquer discussão bolorenta e recheada de definições. O que a literatura fez, durante toda a Flip 2005, foi provocar a consciência individual de um jeito bem coletivo. Houve, por assim dizer, uma "espalhação" democrática do pensamento humanista dessa virada de século. As pessoas tinham muito a dizer, mas nem tanto sobre si mesmas, seu estilo ou o ofício de escrever. O que conta de fato é o seu papel no mundo. E assim foi-se formando uma massa de enorme consistência, alimentada pelo pacifismo forte e sincero de David Grossman, um olhar totalmente novo e verdadeiramente humanista sobre o conflito entre israelenses e palestinos; pela releitura de Michael Ontadjee das suas raízes e das profundas feridas do seu povo; pelo agudo realismo documentado por MVBill, na busca de uma forma de frear o genocídio de adolescentes pretos, pobres e marcados pelas leis do crime organizado no Brasil; pelo jornalismo apaixonado de John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, testemunhas da alma destroçada de Bagdá e de Angola; e pela fiel reprodução que Salman Rushdie fez do que havia de belo e amoroso num mundo hoje extinto, a Caxemira de sua infância.

Lado a lado com a criação literária e intimamente imbricado nela está o ato de viver, viver no mundo. E uma coisa alimenta a outra. Se Clarice Lispector não cabia no mundo dentro de si, se Machado de Assis explicava o mundo na voz seus personagens, e se a literatura também pode falar de algo externo à vivência pessoal, mas dá voz a um registro da condição humana (ou desumana), ela vive na eterna busca por traduzir, transformar e tentar solucionar o mundo. E tudo acaba - ou começa - na mesma reflexão: o que eu posso ajudar a mudar, enquanto produtor ou consumidor de literatura?

O tempo todo, em Parati - enquanto assistia às mesas e recebia essas informações, entre surpresa, emocionada e muitas vezes indignada, ou enquanto caminhava entre as ruelas seculares tentando capturar frestas de passado - essas questões me assaltavam. Reorganizava-me por dentro a partir de todas as novas referências, olhares e leituras da dor do instante presente em toda parte, que funde numa mesma panela os garotos das favelas brasileiras, soldados e crianças na faixa de Gaza, idosos e mulheres nas ruas de Bagdá, mutilados e sobreviventes em Angola.

Mànya Millen tem muita razão e muita clareza. A mescla entre vida literária e vida real, na Flip, foi a grande "produção" do encontro. Produção de consciência e de movimentos que, embora aparentemente pequenos, são definitivos na nossa construção diária do mundo. Sinto-me como que acordando, entre os pequenos e sublimes prazeres de um bom texto e o gravíssimo e convulso acontecer da vida que nos demanda, cada vez mais, ações concretas para operar, ainda que em ínfima escala, as transformações que são, assim como as palavras, muito necessárias para o hoje e o amanhã.

O mundo é pequeno, mas o Alentejo é muito grande

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Palavra de bom português: José Luís Peixoto acredita mesmo no romance. É dele a frase que dá título a este artigo, e que na verdade veio em resposta a uma pergunta: alguém queria saber no que o Alentejo dele era diferente do Alentejo de Saramago. A resposta sintetiza o poder do romance: um mesmo lugar pequeno, povoado de histórias de aldeia, pode dar livros e livros os mais diferentes, de acordo com aquilo que desperta no escritor. Assim a mesma história, contada de outra maneira, torna-se uma outra história.
O paranaense Cristóvão Tezza, que dividiu com Peixoto e Beatriz Bracher a primeira sessão da Flip 2004, "A força do romance", acha que a vida do romance está justamente no fato de que ele não abarca uma "totalidade", mas apresenta um olhar sobre o mundo. O romance narra - e, enquanto houver linguagem, haverá narrativa.
A paulista Beatriz Bracher pondera que o romance só existe quando é lido, assim como qualquer obra de arte só existe no momento em que é percebida. Mas tem um diferencial: fica mais tempo com o leitor. Ele exige uma lentidão, que é justamente onde reside a sua força. Os contos são mais rápidos...
Para José Luís Peixoto, enquanto o mundo for mundo haverá romances. E mesmo os antigos são sempre novos, já que são lidos todos os dias de maneira diferente por leitores que pensam diferente, e assim os vão transformando. - Os leitores acabam sendo os próprios criadores. E uma das grandes riquezas de um texto de ficção é oferecer-se aos outros, enquanto referência e enquanto informação que será processada.
E quais seriam os compromissos da ficção com a realidade do mundo? No aspecto político, José Luís Peixoto sorri e sente-se livre de qualquer obrigação com relação à ditadura de Salazar, já que nasceu em 1974, portanto depois que acabou. - É sempre importante aproveitar a literatura dos que me precederam, porém para criar caminhos individuais. A grande verdade é que tudo nos influencia, de um modo ou de outro; mas é bom não ter obrigação de me posicionar sobre um regime que não conheci. Do ponto de vista da literatura em si, do estilo e da tendência, sinto-me tentado a ir beber justamente nas fontes que são consideradas "fora de moda"; afinal, o romance precisa de muitos estilos...
Beatriz Bracher reforça um outro lado importantíssimo da literatura de ficção: sua influência na educação, por ser o grande palco das experimentações que geram a "posse" das palavras. Só desse exercício saem estilos próprios, formas de expressão individualizadas, não da leitura permanente de jornais e outros textos distantes da ficção. - A literatura ensina a gente a contar histórias e a encontrar o nosso ponto de vista - lembra. Embora, como pondera Cristóvão Tezza, não se enquadre no uso pragmático justamente por ser a única expressão não oficial.
Mas com tudo isso, será que as pessoas lêem menos romances? Cristóvão acha que não. - O que se observa é que as pessoas lêem menos, ponto. Essa é a crise que merece ser combatida, pois a palavra escrita é fundamental como eixo civilizatório e identidade.
Longa vida, pois, ao romance. Em qualquer tempo e lugar, as grandes histórias e suas mágicas palavras serão sempre as primeiras a cativar um aprendiz de leitor.

quinta-feira, julho 14, 2005

Dois homens turcos em um

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Olho para ele e me lembro dos altivos beduínos do deserto, com os quais um preciso Malba Tahan povoou a minha infância. Ao lado de Monteiro Lobato, o grande professor Mello & Sousa, disfarçado de árabe, foi um dos autores que mais sedução e magia trouxeram à minha vida de criança sempre mais contemplativa do que afeta ao ar livre.

De fato, Orham Pamuk encarna muito bem o beduíno da minha imaginação; alto e esguio, moreno, olhos verdes, expressão distante e concentrada. E que nos dois encontros com o público transfigurou-se em dois personagens quase completamente distintos um do outro.

O primeiro deles estava tenso diante das "1001 Noites" e falou de sua relação atormentada com essa obra que exerce intenso e igual fascínio sobre orientais e ocidentais. Na primeira leitura, aos sete anos, teve medo; na segunda, aos vinte e poucos, ficou incomodadíssimo com o caráter duvidoso das mulheres das histórias e, embora tenha gostado do livro, não aceitou esse fato e ficou ressentido consigo mesmo! Na terceira, finalmente, sentiu-se influenciado pela magia das tramas e pela qualidade do texto, que virou uma contínua fonte de prazer e inspiração. À medida que falava do caldo de culturas que formou a obra, das várias versões nascidas na oralidade e da multiplicidade de autores, desvendava a história da história: não se sabe até que ponto as "1001 Noites" seria uma obra totalmente oriental. Publicado pela primeira vez numa compilação organizada por um autor francês, o livro dito "original" só mais tarde viria a incorporar contos como "Ali Babá" e "Aladin". E a estética se transformaria, também, nas sucessivas edições.

No segundo encontro surge um Pamuk espirituoso, engraçado e falante. É talvez o único autor que se sente influenciado pelas capas de livros que não leu, e mesmo não os tendo lido tem ciúme de seu conteúdo, "porque devem ter sido escritos por alguém com uma vida bem melhor que a minha".

- Quando não consigo escrever vou para uma livraria e fico por lá, procurando alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é. De repente pego um livro, olho para a capa dele e isso me influencia! É verdade! E que inveja sinto de quem o escreveu! Depois vou para casa, escrevo, escrevo, escrevo... e volto para comprar justamente aquele livro, porque acredito que o autor deve ter dito alguma coisa importante. Aí leio e o conteúdo também me influencia!

Seu romance "Meu nome é vermelho" é uma história de mistério que versa sobre um pintor que cria iluminuras perfeitas. Pamuk, na verdade, chegou a se iniciar nos pincéis e tintas. - Não sei por que parei de pintar. Escrevi um livro inteiro (o autobiográfico "Istambul") só para explicar isso para mim mesmo.

Escrever, para um alegre e já totalmente descontraído Pamuk, tem a ver com lembrar e continuar a lembrar. E acrescentar cada vez mais, sempre e abundantemente, até que chega o dia de fazer o caminho de volta e cortar passagens.

Entre sorrisos largos e uma ou outra pitada do humor mais fino, Pamuk já domina a paisagem feito um tuaregue ondulando ao vento. Como Faulkner, sua maior referência, dá voz a objetos e deixa o romance se auto-inventar, em suas próprias palavras.

Os dois Pamuk, afinal, se combinam na melhor tradição árabe: magia e fé, sonhos que brotam como miragens do mais vasto deserto da alma e se transformam em palavras que contam histórias sem fim.

quarta-feira, julho 13, 2005

Rimas de ordem

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Confesso que conheço pouco da estética hip hop, ainda que tenha em casa uma filha e uma sobrinha adolescentes e tenha encontrado, em muitos dos festivais de dança que participo, trabalhos interessantes ao som desse ritmo vibrante e identificado com movimentos voltados para a inclusão.
Mas desde Parati uma história de hip hop tem estado dentro de mim, insistente.
Imagine milhares de adesivos para carro, todos absolutamente políticos e infinitamente diversos em intenção e gesto; falam de paz, violência, racismo, homofobia, revolta, felicidade, amizade, arbitrariedade, segregação e tudo o mais que você pensar. Agora pense numa letra de hip hop que junte tudo isso com algum sentido e, ainda por cima, com rimas - tudo para formar o retrato de um tempo agressivo e triste na história de um país.
Pois foi isso, justamente, o que fez o escritor israelense David Grossman, em colaboração com um dos mais importantes grupos de hip hop de sua terra.
Quanto mais de maldade você consegue engolir?, diz o refrão da Canção do Adesivo, como é mais conhecida. A pergunta cabe. É crucial e tristemente atual, tanto em Jerusalém como aqui. A bela embalagem musical, releitura atualizada dos ritmos tradicionais, não esconde o tom rasgado do texto, as palavras de ordem, as causas desencontradas.
Logo após o assassinato de Itzhak Rabin, David Grossman viu um homem tentando arrancar, com uma furadeira, um adesivo pregado num carro, que dizia: "Rabin é assassino". Foi aí que "bateu" a idéia de juntar todo aquele quebra-cabeça.
Com uma clareza e coração aberto impressionantes, Grossman cumpre o firme propósito de se tornar uma voz no encalço da arbitrariedade e na direção de um diálogo ampliado, um diagnóstico mais fundo do ambiente de conflito em que vive. E o hip hop é parte disso. Tanto que foi escolhido pela organização da Flip como a trilha sonora final da festa, após a última sessão, no domingo. Um recado para quem se confrontou, durante cinco dias, com o bom, o belo e o trágico nas diferenças além dos livros, que massacram grande parte do mundo. Um dos temas dominantes, aliás, do encontro - esmiuçado, além de David, como jornalista que vive em Jerusalém o cotidiano do conflito entre árabes e israelenses, por MVBill e Luiz Eduardo Soares, em cima do trabalho com os jovens das favelas dominadas pelo tráfico, e por John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, jornalistas que cobriram Bagdá e a guerra de Angola, respectivamente.
Acabo cruzando mais uma vez com David Grossman na pontezinha que separa a Flip do centro histórico de Parati, e pergunto como se pode conseguir o CD. "Pela Internet", diz, no meio do aperto de mão. "Mas o que se deve procurar?", auxilia um jornalista que o acompanha. "O nome é 'Hadag Nahash", diz David. (Repito algumas vezes em voz alta). "Se você conseguir se lembrar disso, vai encontrar."
Repito foneticamente as palavras por todo o caminho até a pousada, onde breve pegarei minha bagagem para retornar ao Rio. Ao chegar, grafo-as no meu indefectível caderno de notas, para não esquecer. E debato-me durante parte da segunda-feira por não saber seu significado, até que o milagre da Internet desvenda tudo. E descubro que este é o nome da banda, e não da canção, como pensara. A música aparece cristalina num site do grupo, assim como uma tradução da letra e até o vídeo-clipe. Ah, e Hadag-Nahash, segundo a tradução do Google, significa "peixe-cobra", embora eu não saiba direito o que possa ser isso.
Ouvi-la tornou-se um ritual de lembrança, um reforço da marca de doçura e firmeza que envolve o olhar de David sobre a responsabilidade humana diante do conflito - o seu específico e o de cada um de nós. A responsabilidade absoluta, de cada um, de se colocar no lugar do outro, ainda que esse outro seja o seu inimigo. E combater o arbítrio dia após dia, com as armas da clareza e da humanidade.

terça-feira, julho 12, 2005

Tratado das Letras de Parati

Primeira providência na friusca manhã de quinta-feira, 7 de julho; comprar um guarda-chuva - o maior possível, pois o tempo trai - e um caderno onde guardar a memória.
Ainda não sei bem que tipo de caderno vou querer, mas precisa ter capa dura e caber na bolsa. Enfim, algo prático e até meio de época, nesse tempo de palmtops e laptops.
A vendedora me indica uma ala no fundo da loja. Percorro as prateleiras e dedico toda minha atenção à escolha do exemplar perfeito. Toda a vida preferi aqueles de lombada, elegantes, sóbrios, mas ultimamente ando com o pé atrás; meu fiel "amarelinho", companheiro de tantas intimidades, foi desmontado por uma sobrinha, na tentativa de arrancar-lhe folhas! Então volto-me para os espirais e, após alguma deliberação, decido-me por um que atende pelo sugestivo nome de Happy Sports, com fotos de esportes radicais na capa consistente e uma espiral azul que confiei não fosse se soltar ou machucar meus dedos.
Depois, e só depois de o caderno bem guardado na bolsa, é que me deparo com os guarda-chuvas e escolho um enorme, axadrezado em estilo inglês, que decerto me defenderá das agruras do tempo. Na véspera, uma chuva implicante após o show de Paulinho da Viola me obrigara a cruzar na intempérie os poucos metros que me separam da pousada. Poucos, sem dúvida, em tempo firme; mas com chuva...
Sigo solene para minha primeira mesa, ou palestra, ou sessão, ou conferência. E a ansiedade por esse encontro com o novo, no espaço familiar da Tenda dos Autores, é bem parecida com a que me acometeu no ano anterior.
Após a mesma fila, encontro um ótimo lugar bem em frente ao palco que se chama mesa, emoldurado por uma Parati naif pintada ao fundo. Enquanto espero ao som de bossa-nova e às vezes Burt Bacharach, abro o caderno, busco a caneta, ligo os sentidos e a aventura começa, preenchendo minha cabeça e as páginas do caderno quase na mesma velocidade. Não que eu tenha sido, ao longo da vida, uma anotadora compulsiva; ao contrário, confesso que até desprezava um pouco essa prática. Mas como saber a festa pedra por pedra, para retratá-la aqui no blog? Rendo-me, e acabo tornando esse caderno quase uma parte de mim.
Com um fervor que eu própria desconhecia, passo a abrir o ilustre confidente e nele registrar velozmente as mais belas, as mais íntimas e até as mais duvidosas declarações, fragmentos de memória, excentricidades, trejeitos transformados em palavras. Interesso-me por todos os autores indiscriminadamente, os mais brilhantes e os acuados, os falantes e os tímidos, os envolventes, fascinantes, distantes, belos ou menos belos. E o caderno recebe tudo quanto é idéia, verdades ou não em ampla dose, diletantismos, aforismos, figuras de linguagem. É aberto cinco vezes sem falta a cada dia e fechado, para dormir, na hora do aplauso final. Mas fica comigo, ao lado do corpo, na pele da bolsa, e me faz rir pensando-o igual ao "caderninho" que Erasmo Carlos escreveu e Ronnie Von imortalizou: "eu queria ser o seu caderninho, pra poder ficar juntinho de você..." Não sei se ele, o caderno, concordaria, mas para mim é meio igual. Um caderno, um cofre-forte com as preciosidades que vou recolhendo bem preservadinhas, na minha escrita o menos taquigráfica possível, pois gosto mesmo é de ver as frases inteiras e ainda por cima não sou taquígrafa. O grande bem que guardo da pré-história administrativa é, sem dúvida, a capacidade de datilografar com os dez dedos e muito agilmente, mesmo tendo sido reprovada no curso do SENAC, há mais ou menos meio milênio atrás.
Houve momentos em que temi pelo fim do caderno antes do fim das sessões (como faria com dois cadernos?), mas com o evento para mais da metade convenço-me de que vai dar, e então terei tudo num só lugar.
De fato, é o que acontece. Das 96 folhas originais sobraram 16, o que significa que tenho nas mãos uma verdadeira volta à FLIP em 80 folhas, 160 páginas, mais de uma caneta de tinta e mais que o mundo de vastas intensidades.
São estas intensidades que derramarei a cada dia sobre este blog, para livrar minha alma da força das águas que a engolfam presentemente, e para trazer a todos os que me lêem um pouco do muito que senti, nesses parcos e loucos cinco dias literários.

segunda-feira, julho 11, 2005

Aral

Certas urgências são grandes.
E novas, estranhas.
Debruço-me sobre tantas folhas
de pensamento lançadas
e fervo.

Convulsões me embaralham.
Mal consigo catar os órgãos
todos alvoroçados,
enfunados no corpo,
sem tino.

Difícil olhar de frente
os dias, noites, arrepios
de tempo guardado,
revisitado,
desbotamento de chuva fina.

Ventos se desviam
nos intervalos das pedras,
as roladas e as outras,
enquanto varo por entre casas longas,
encompridadas na noite.

Quero saber tanto
o que tanto me incomoda
e faz faltar espaço ao estômago
quimicamente oscilante,
faz o ar virar lágrima
que escala a pele
e entra de novo na alma,
ah, tanto estrago.

Quero saber dos olhos outros,
prismas, acordes,
pancadas na fronte
da chuva que vem, vai,
vem, vai
e se instila
no centro das dores.
No que falta, no que é
e no que nasce.

Rochoso, salgado
e cristalinamente
próximo.

domingo, julho 03, 2005

Muito depois da raiva, os assuntos estão de volta

... bem, a raiva passou, claro. Os assuntos, acumulados uns por sobre os outros, me repreendem e clamam por liberdade: querem o espaço que lhes é de direito no blogue nosso de cada dia. Concordo: afinal, seria impossível mantê-los quietos por mais tempo, no claustrofóbico cômodo a que foram involuntária e subitamente confinados.

Domingo, 26 de junho: muito trabalho numa nova tradução, desta vez um manual de ações de voluntariado. Traduzir é um grande prazer para mim - ser a única responsável por decifrar, para muita gente, os códigos mentais do autor, respeitando seu estilo num idioma que é pensado diferente do seu, antes mesmo de ser escrito. Adoro esse desafio, esse garimpo constante pelas palavras, expressões e formas que cumpram essa missão. Após dezenas de livros, partes de uma enciclopédia, artigos e contos, sinto-me cada vez mais à-vontade e feliz como tradutora. Depois de escrever, é o que mais gosto de fazer na vida!
Bem, nem só de trabalho, afinal, viveu o domingo: levei meu sobrinho André Luiz para ver "Madagascar", o tão esperado desenho da Pixar. Confesso que me diverti além da pipoca e do refrigerante; se Woody Allen tivesse feito um desenho, certamente seria este. E o leão Alex, personagem principal da história e rei do zoo de Nova York, seria o Woody Allen! Onde já se viu bichos de zoológico que odeiam selva, natureza, cadeia alimentar, essas coisas?
Bem, há muitas situações engraçadas, detalhes pitorescos e referências, toneladas delas. O que faz com que se divirtam mais aqueles que as conhecem. As crianças curtem, não ligam, mas nesse aspecto perdem. Na abertura quase psicanalítica (se é que a psicanálise explica algo sobre animais ditos irracionais), a zebra Marvin tem um sonho recorrente: está correndo por uma vasta campina com um lago e montanhas ao fundo. E é perseguida pelo leão Alex, seu melhor amigo! E ao som de... adivinha??? Nada menos do que a gravação original (com coro e tudo) de Born Free, tema do filme "A história de Elsa", clássico sobre uma leoazinha devolvida ao seu habitat. A garotada, é claro, dançou nessa.
De resto, a trama é engraçadinha, com as confusões que a bicharada arruma nos costados d'África, ao encontrar um bando de lêmures enlouquecidos. De todos os personagens, os mais interessantes são os pingüins fugitivos, que chegam a seqüestrar um navio. "Madagascar", longe de ser uma obra-prima, é divertido e prende a atenção. Pena que a tecnologia da animação por computador ainda pareça primária aos olhos de quem cresceu vendo os movimentos perfeitos criados manualmente por Walt Disney e sua equipe. Mesmo assim, vale a visita!

Segunda, 27 de junho: tinha uma reunião de trabalho com o grupo de cultura que estou ajudando a fundar, o ConceituArttis. Mas tomei bolo de quase todos. Um esqueceu, a outra estava atendendo um cliente, a terceira teve crise renal... o jeito foi cancelar e ir pra casa assistir C.S.I., a nova coqueluche lá em casa.
A série C.S.I. (sigla de Crime Scene Investigation) é positivamente um excelente produto. Em três versões (C.S.I., C.S.I. Miami e C.S.I. New York), trata sempre de um crime e da investigação que a equipe da Perícia faz a partir da cena do crime. Tem inteligência, lógica, tecnologia, efeitos, elencos pra lá de ótimos, tramas baseadas em casos reais e personagem que estão longe de ser perfeitos, mas que batalham até chegar a um resultado. Para ficar melhor ainda, às vezes não chegam. Não concluem, não conseguem prender um criminoso, erram como qualquer um. C.S.I. é tão interessante que Quentin Tarantino quis dirigir o capítulo final da série, que foi ao ar no último dia 29, com duas horas de duração. Não pude assistir, mas minha filha ficou ligadíssima e comentou: "Mãe, foi siniiiiistro!!!!"

Terça, 28 de junho: Dia de quase gritar de felicidade após assistir "Batman Begins". Trata-se de uma homenagem no mínimo comovente do diretor Christopher Nolan ao personagem original de quadrinhos concebidos para adultos, com tema adulto e reflexão madura. O Bruce Wayne de Batman Begins não tem nada das historinhas pasteurizadas que assitimos na infância, com seus BANG! POW! e CATCH! explodindo na tela. É retratado em toda sua dor, revolta e amargura. Sente-se culpado pela morte dos pais, assassinados na sua frente numa cidade violenta e destruída pela corrupção. A Gotham de Bruce Wayne poderia, sem medo de errar, ser comparada a qualquer grande cidade do mundo de hoje, imersa em problemas, refém da violenta e palco de uma impunidade quase generalizada.
Após passar quase uma vida treinando para se vingar, Bruce Wayne retorna à casa e se depara com uma Gotham ainda pior do que deixara. E resolve agir à sua maneira, já que não pode contar com o poder constituído. Para isso se transforma num Morcego, "porque me dá medo", revela.
Longe do estereótipo do justiceiro, o personagem que confunde e surpreende o crime organizado da cidade age alimentado pela raiva, mas não cegamente. Cumpre uma dolorosa lógica interna para defender Gotham e se livrar dos criminosos, com a ajuda de Alfred, o mordomo que o criou, de Lucius Fox, um adorável cientista meio louco que trabalha nas empresas de Bruce, responsável por todas as gadgets adotadas pelo Batman, e do quase sempre atordoado comissário Gordon, praticamente o único que não se deixou levar pela onda de corrupção.
A estética é perfeita: a tela grande se transforma no maior álbum de quadrinhos do mundo, que não cansamos de folhear. As imagens são fortes, belas, uma profusão de claro-escuros que reproduzem desenhos hiper-realistas. A luz é fantástica, a trilha sonora impecável, o ritmo intenso. Os atores, todo o grande time mobilizado para a luxuosa produção, não poderiam estar melhores. Christian Bale captou como ninguém a alma atormentada de Bruce Wayne. Michael Caine, sempre grandioso, não poderia estar melhor como o zelozo mordomo Alfred. E Morgan Freeman, e Gary Oldman, e Tom Wilkinson, e Rutger Hauer (belo como sempre), e Katie Holmes (revelada pelo ótimo seriado Dawson's Creek, também segura a onda e não faz feio de modo nenhum).
Batman Begins é um presente. E espero que, como o nome sugere, possa ser apenas o começo de uma série que nos devolva o personagem com suas cores verdadeiras, não só para nosso próprio deleite, mas também como uma reflexão que nos ajude a reconstruir de fato alguma coisa para as novas gerações. Sim, porque o Batman que nos chega agora não legitima as paranóias bushianas que trancafiam nossos sonhos; muitíssimo ao contrário, ele busca a cura para si mesmo e para os outros, admitindo a dor do mundo mas permitindo, cada vez mais, que a sanidade ocupe o lugar da devastação.

Quarta, 29 de junho: Fui ao Rio e fiz os exames para uma cirurgia de vista. Já decidi que vou tirar os óculos, e os prognósticos são os melhores. Creio que na próxima semana - quer dizer, pós-FLIP, onde estarei de 6 a 10 de julho - operarei a primeira vista (o intervalo entre as duas é de mais ou menos dez dias). Estou cheia de coragem e com vontade de poder fazer, de novo, um traço no olho sozinha, sem borrar!
À tarde assisti ao delicioso filme "Inconscientes", do diretor espanhol Joaquín Oristrell. A bem-humorada sátira da psicanálise tem uma trama extremamente criativa, além da beleza dos figurinos e da ambientação de época. Os atores são um capítulo à parte, que sem dúvida traduz a força de um cinema espanhol cada vez mais contemporâneo.
De noite, me esperava o Momix, num Theatro Municipal ultra-lotado. Da última fila do balcão simples, em que pese perder a visão da metade superior do palco, assisti ao belo "Lunar", mais uma demonstração de que o Momix sempre surpreende. Entramos literalmente no clima do espaço sideral, com seus sons e sensações, acentuados por eficientes projeções de formas, crateras, mares e desertos lunares. O uso da luz estroboscópica sobre roupas metade brancas, metade pretas, deu aos bailarinos oportunidade de criar mil movimentos, sempre em dupla mas como se fossem um. Ao contrário do que pensa um nobre amigo meu, que torce o nariz para o Momix porque "eles fazem tudo para esconder os bailarinos", em "Lunar" o jogo de esconde-esconde é, na verdade, muito revelador: os movimentos são tão perfeitos, suaves e bem desenhados que a gente reconhece, de pronto, a absoluta qualidade dois bailarinos.
E que bailarinos! Sucedem-se em outras situações, outros figurinos e propostas distintas - como as moças de maiôzinho verde-limão, que se movimentam sobre imensas bolas pretas e traçam no ar saltos e delicadezas quase intangíveis, ou os duos e trios "radiografados" por coloridas luzes iridescentes, que lhes conferem um aspecto semi-fantasmagórico, quase como "plasmas" no espaço.
As aranhas, porém, são talvez o momento mais fascinante. Nessa hora, concordo, nada se vê além dos tentáculos estilizados no palco, e o aspecto inexorável da sobrevivência na cadeia alimentar: o animal maior devora a sua presa diante de todos, mas em seguida se metamorfoseia numa imensa rosácea que se projeta e cresce no palco, pontilhando a bela trilha musical, e confere um certo êxtase ao final do espetáculo.
Final? Não sei, não. O agradecimento dos bailarinos, agora desnudados em suas formas trabalhadas e vestindo apenas exíguos trajes de banho, é um espetáculo à parte. Todos reproduzem seus melhores movimentos a olho nu diante da platéia e são acolhidos com o merecido e tradicional calor da nossa exigente platéia. O Momix é tão querido dos cariocas que já virou uma espécie de patrimônio! Um mar de aplausos, e não o mar da lua, envolveu os dez artistas num clima bem mais ameno que as temperaturas que enfrentaram, no solitário espaço, para produzir este fascinante espetáculo.

Quinta, 30 de junho: Dormi pouco, viajei de volta bem cedo de manhã, e o dia é cheio. Daqui a um mês darei por encerrada minha trajetória profissional na empresa em que trabalho, aposentada. E vou me dedicar, decididamente, à cultura. Nos planos estão um MBA em gestão cultural e um curso de empreendedorismo na PUC do Rio. Enquanto construo adequadamente essa passagem, envolvo-me de corpo e alma nos processos de comunicação que estou concluindo. E preparo-me para os altos e baixos que certamente enfrentarei, a despeito de minha escolha consciente. Vou para casa relativamente cedo e reencontro meus filmes e séries na tv a cabo, mas cochilar é inevitável.

Sexta, 1º de julho: Compro o último ingresso que me faltava para a FLIP 2005: o do show de abertura, com o amado Paulinho da Viola. Paulinho é para mim uma certeza, um prazenteiro conforto, o sorriso que é quase um abraço, símbolo do equilíbrio, da resistência da verdadeira cultura brasileira. Amo Paulinho com um coração quase tão azul como a Portela que passou em sua vida! Tenho por ele um respeito que beira a reverência. Aliás, assitir ao documentário "Meu tempo é agora", da Isabel Jaguaribe, com roteiro e entrevistas de Zuenir Ventura, só fez aumentar esse respeito e o orgulho de fazer parte deste "agora", de ter a chance de viver na mesma época que esse grande brasileiro.
Nesse mesmo dia, aporta no SESC de Barra Mansa, minha cidade, o show "40 anos de Jovem Guarda", com Wanderléa, Erasmo Carlos, os Golden Boys e os Fevers. O lado meu que curtia toda essa turma em 66, 67, não resistiu: lá fui eu em clima de "recordar é viver". E me deparei com um anfiteatro absolutamente lotado. Praticamente a minha geração inteira de conterrâneos, colegas de escola, amigos de domingueiras e "brincadeiras" (é como se chamavam os bailinhos da minha época), marcou presença.
O incrível é constatar que sabemos cantar praticamente todas as músicas que há anos não ouvimos. O computador mental do ser humano é tecnologia divina de altíssima qualidade; vai lá no fundo e busca as letras inteirinhas, que jorram automaticamente sem sequer a gente se dar conta!
O show começa com os Fevers, que depois continuam no palco acompanhando todo mundo; Golden Boys, Wanderléa (melhor e mais bonita do que nunca) e, por fim, o Tremendão Erasmo Carlos. Sua entrada, concebida para ser um delírio, é na verdade motivo de preocupação; passos incertos, rosto muito inchado e a pele de uma coloração pouco saudável, Erasmo inspira cuidados. Relembra seus grandes sucessos - "Gatinha manhosa", "Sentado à beira do caminho" e muitos outros - com a providencial ajuda dos Golden Boys e de Wanderléa (aliás, protagonista do momento mais emocionante da noite, ao ajoelhar-se na beira do palco para abraçar uma senhora idosa, enquanto uma platéia comovida entoava, muito afinada, a canção "Agora você vem dizendo adeus" que ficou inacabada, como que a consolá-la e embalá-la).
A grande beleza da noite ficou, na verdade, por conta da platéia. A disposição e o entusiasmo de comunicar-se com artistas queridos e ressuscitar uma alegria juvenil há muito guardada no peito foi um ato coletivo de coragem. Parece que a saudade de um tempo bom, a força de uma juventude duramente castigada pelos negros tempos de censura e repressão, a energia de quem sabe que pode mudar o mundo, tudo isso esteve por muito tempo sufocado nos corações de tantos homens e mulheres que construíram suas vidas, foram à luta, formaram família, criaram seus filhos. E que de repente, num ritual coletivo, encontraram nesse show o espaço para libertar todas as emoções de anos e anos, marcadas por músicas que os ajudaram a sobreviver durante uma das fases mais difíceis da nossa formação. A catarse coletiva traduzida com doçura surpreendeu e comoveu os próprios artistas, que a receberam como uma verdadeira carta de amor cantada em alto e bom som, o tempo inteiro, até o acorde final da guitarra do célebre e sempre talentoso Miguel Ângelo, dos Fevers.

Sábado, 2 de julho: o Ballet de Câmara, um dos amores da minha vida, ressuscita sempre. Estamos remontando o espetáculo "Quarteto", talvez a melhor síntese da trajetória desenhada pelo diretor artístico Antonio Bento para a companhia. Juntos há oito anos nessa empreitada, Antonio e eu já passamos por poucas e boas ao lado dos bailarinos: o grupo, que começou numa academia hoje extinta, não conta mais com uma sede para trabalhar. Por isso, passei o sábado correndo atrás de uma sala de ensaios, fundamental para seguirmos em frente. Ainda não consegui, mas na manhã de segunda prossigo em minha busca. No minuto final, sempre demos sorte; por que há de ser diferente agora? Respiro fundo, acalmo-me e aguardo até amanhã, confiando sempre na boa estrela da companhia.

Domingo, 3 de julho: Sinto-me estranhamente feliz após conseguir colocar este blogue em dia. Principalmente depois de ter assistido, de manhã, ao show dos 90 anos do palhaço Carequinha, uma das grandes alegrias da minha infância.
Carequinha era o rei da garotada na TV Tupi, quando eu era criança. Cresci assistindo aos seus programas. Além dele havia o Fred, hoje falecido, e o Meio-Quilo, um anão que engatinhava sentado por todo o palco (aliás, minha irmã do meio, Lenita, quando pequena, engatinhava igualzinho a ele). Carequinha faz parte de uma geração de belos e inocentes palhaços, que encarnavam uma alegria pura, poética, infantil mesmo. Ainda me lembro do Piolim, grande pioneiro, e do Arrelia, falecido recentemente, além de uma gama de outros, desconhecidos, personagens dos circos mambembes que circulavam pelo interior. A figura do palhaço tem seu quê de poesia e de tragédia, de emoção que se alterna com alegria. Mas Carequinha, o maior, o mais próximo, o mais querido, tem lugar cativo no meu coração. Então assumi a criança que mora em mim e sentei na platéia, ao lado de um sem-número de crianças, pais, mães e avós. Em casa, antes de sair, agüentei firme as gozações da família. E daí? De quem é o sonho?
Começa o espetáculo, com números de ventriloquismo, malabarismo, contorcionismo (sim, isso mesmo!) e boas palhaçadas. Eis que surge o Carequinha, com seu microfone, suas musiquinhas e a mesma voz de sempre, muito firme a despeito da idade. As lágrimas escorrem e vejo que, de menina, não mudei muito. Continuo a ter fé nas pessoas, a ver a honesta beleza de alguém que desperta e conquista o carinho de crianças de qualquer geração. Apesar dos desenhos japoneses, das Xuxas e Angélicas, lá estavam no SESC muitas crianças moderninhas, e no entanto absolutamente seduzidas pelo bom e velho Carequinha!
Penso no que há de belo e trágico na máscara do palhaço. No sorriso projetado e nos olhos que, mesmo anciãos, guardam o mesmo brilho, a mesma vontade, a mesma alma de artista. Penso no que há de grande em alguém como o Carequinha, que não desiste em seu traje de lamê colorido, na grande gola que ele mexe com os ombros, na bem-cuidada maquiagem, no chapéu e na expressão que tanta gente aprendeu a amar. E agradeço por estar ali, guardando seus 90 anos como um presente reservado a mim, unicamente a mim, há tantos anos, e só agora entregue.
Subimos no palco ao final, eu e a menina que sempre fui. E peço ao fotógrafo que o SESC contratou: "Bate uma foto minha com o Carequinha?" Da primeira vez, entro com todo mundo, já que ninguém quer mesmo sair de perto dele; mas resolvo ficar até o final e, depois que todas as crianças já saíram, consigo uma exclusiva. E digo a ele, orgulhosamente: "Carequinha, tenho 49 anos e sou sua fã desde pequenininha!" Ganho um abraço, um sorriso - e uma dádiva para sempre, eternizada na foto que certamente viverá num porta-retrato, com toda a pompa e circunstância, no melhor lugar que eu conseguir encontrar para ela.