sexta-feira, julho 14, 2006

Auto-estranheza

Hoje me estranhei comigo mesma. Isso há tempos que não me acontecia, e confesso que não estava lá muito preparada para passar o dia com um certo incômodo na área do estômago, a avisar-me que as coisas não andavam bem.

É difícil desculpar-se consigo mesmo, justificar-se diante da própria alma, dar explicações com o ego olhando pra nossa cara. Até porque, ia adiantar o quê mesmo? Aos olhos interiores, tudo é transparente. O malfeito é malfeito, o descuido é descuido mesmo, de nada servem palavras bonitas. A alma se desloca, o sentimento de inadequação penetra-lhe os poros cansados.

Fiz bobagem, sim. Precipitei-me em terrenos que não adivinhava movediços - e de repente vi-me tocando sem autorização o intocável: os sentimentos alheios. É ruim olhar e ver que, de fato, "foi mal", como diz a geração da minha filha. É difícil e sem jeito - e nem há como despistar. Pra quê, pra quem? O jeito é olhar de frente para a dor e o desconforto, a incapacidade, o gesto infeliz, a coisa errada no momento errado, atingindo o alvo errado. Ainda que o passo não tenha sido bem avaliado, o que importa é mesmo o resultado, não?

Contabilizei resultados ruins hoje. Reversíveis, possivelmente, mas ruins. Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, disse uma vez Chico Buarque; mas tem dias que a gente age como quem quebrou porcelana rara. E nessas horas é que é difícil consertar.

Sinto-me assim, hoje; falei antes de pensar, fui com muita força na curva e o retorno ficou prejudicado. Reconheci, desculpei-me, mas sinto-me mal. O estômago ainda anda oprimido. O desconforto não me abandonou.

Mas a reflexão é útil; é bom saber o erro bem visível, por mais que incomode. É bom saber que, mesmo quando se erra, a meta é não errar, e esta persiste. É bom saber que, em meio a tantos estímulos a nos cegarem os sentidos, ainda podemos enxergar, com toda clareza e verdade, a parcela de responsabilidade que nos cabe por cada palavra que sai da nossa boca, por cada gesto canhestro e mal calculado. Alguém com certeza será atingido - e os resultados podem ser imprevisíveis.

De frente para mim mesma, encaro o espelho da alma. Está mais do que na hora de comprometer-me com a minha própria humanidade.

quinta-feira, julho 13, 2006

Paixão renovada pelas palavras

Lá vem a Flip de novo... e lá se vai a minha alma, de armas e bagagens, pra Parati. Pelo terceiro ano consecutivo, aproveito a felicidade mansa de presenciar encontros com o que há de melhor no pensamento contemporâneo, na literatura urgente ou na memória das grandes obras.
A Festa Literária Internacional de Parati não é festa por acaso, nem é sucesso por acaso. É festa porque celebra, de fato, a literatura como ponte entre culturas, cabeças e ideologias. Como flagrante do tempo de hoje ou retrato, em vivas cores, do tempo de sempre. E é sucesso porque identifica e atende muito bem à demanda pelas palavras verdadeiras, vigorosas e sem maquiagem que constroem o agora. Ou pelas palavras emblemáticas que nos fazem visitar as fronteiras do tempo. Enfim, a paixão por palavras tem público, e que público! Gente que não se perturba diante da perspectiva de passar, por exemplo, uma manhã inteira sentada numa fila civilizada, em plena Copacabana, para garantir seus ingressos logo na primeira hora, e de uma só vez.
Participei ontem dessa fila - que na verdade foi o meu primeiro evento pré-Flip 2006. E confesso que me diverti com o clima descontraído que se criou na antiga galeria do Bruni Copacabana, o saudoso cineminha que, demolido, deu lugar à ampliação da sofisticada loja Modern Sound, a meca dos fanáticos por música onde seriam vendidos, a partir do meio-dia, os almejados ingressos para a Flip.
Rato de livraria que se preza tem prazer em compartilhar. E na fila da Flip não foi diferente; as pessoas se organizavam naturalmente, procuravam acomodar-se e ajudar as outras, promover tranqüilidade e criar alguma graça com que passar o tempo - tudo isso de um jeito bem carioca, sem estresse.
Um pouco de cansaço? Sim, vá lá, concedo. Mas foi quase nada. Eu, que cheguei munida de um prático banquinho de armar, nem precisei dele; acabei emprestando e me sentei no banco da fila (é verdade, havia dois, um para os idosos e outro para o público em geral), batendo papo com os vizinhos e assistindo, de camarote, ao sol que se insinuava pela Rua Barata Ribeiro com sua loja de frutas que um caro amigo adorava, a lojinha nova da Cafeína e o distinto Clube Israelita Brasileiro.
Consegui meus ingressos, todos eles. Não sem uma generosa dose de burocracia, que dava uma prévia do que viria a ser o dia dos atendentes da TicketMaster. Um pouco de confusão na primeira hora, ansiedades à solta, mas reforço meu estoque de paciência, respiro fundo e espero, aliviada, a minuciosa contagem e conferência dos ingressos. Entrego a procuração que garante a meia-entrada de uma amiga e assisto, sem acreditar, à "carimbagem" e preenchimento dessas entradas, uma a uma, pelo atendente. Lá fora, a fila começava a enlouquecer com os 40 minutos que levou o atendimento das primeiras três, quatro pessoas. Quanto tempo levariam as centenas de outras que aguardavam?
Há que se reconhecer: a Flip tenta, a cada ano, melhorar a venda dos ingressos. E até tem conseguido progressos, mas como agradar a todos? O evento é um só, mas a paixão das pessoas é maior que ele e cresce a cada ano, então...
Desta vez, consegui. Outras pessoas também conseguiram. Na saída, despeço-me dos novos amigos que, alegres, já marcam encontros na entrada da bela tenda, encantados com a programação intensa e promissora.
E desço a Rua Santa Clara com um doce cheirinho de tinta sobre papel a preencher-me a alma.

Quem é vivo sempre aparece

Apesar do lapso - quase 10 meses! - a parte viva de mim está feliz em reencontrar, reassumir esse espaço com boas palavras e idéias. Não é que elas - as palavras e as idéias - tenham arrefecido nesse tempo; não, muito ao contrário. O que pesou foi, como disse Ruy Guerra no histórico Calabar, é que há distância entre intenção e gesto. Uma vez encurtado esse caminho, cá estou eu de volta ao ciberespaço com gestos prontos a materializar a intenção de sempre: informar, discutir, criar, traduzir sonhos, manter viva e acesa a chama do espírito jornalístico.

Reencontros

Naquilo que tem de melhor - a democracia do espaço e a rapidez da informação - a Internet pode ser um presente de fato. Nesse particular, tenho sido agraciada ultimamente com muitas alegrias.

Nos idos de 1974, participei de um programa de intercâmbio chamado AFS (American Field Service), que me deu a chance de morar por 11 meses nos EUA e aprender muito, mas especíalmente três coisas: falar inglês, me virar sozinha e dar muito, mas muito valor à amizade.

Éramos muitos, uns 170 ou mais, do Brasil inteiro. Todos muito jovens, entre 16 e 18 anos, e muita vontade de ver qual era. Quase sem lenço e sem documento; só sabíamos, de fato, que íamos viver como uma família e, supostamente, ser tratados como filhos na casa. Ah, e também freqüentaríamos a escola por lá.

E assim foi; ganhamos irmãos, pais novos, muitas vezes avós - e professores, colegas, namorados. Discos e livros e muito mais. Passamos sufôco, solidão, saudade, sentimentos de inadequação, grandes alegrias, muito aprendizado.

Hoje, 31 anos depois, a Turma do AFS do ano letivo 74-75 (é, lá o "ano" é diferente) está de volta, todos de novo entre 16 e 18 anos na alma, num grupo do Yahoo que está virando a cabeça, dando palpitação, frio na barriga, vontade de rir e chorar, ansiedade louca para ver qual o próximo nome que foi "achado" na rede.

Alguns já conseguiram se encontrar: a turma de Porto Alegre, a de Belo Horizonte, a de São Paulo... outros ainda suspiram pelo "ao vivo", mas se escrevem e telefonam, na esperança de diminuir a distância imposta, física...

Mas no coração estão juntinhos, com as mesmas roupas, cabelos e sonhos. Igualzinho antigamente, parece que foi ontem, é tudo muito verdadeiro, sincero, inocente mesmo.

No que tem de melhor, a Internet está sendo salvadora e essencial na vida de toda essa gente - da qual faço parte desde que tomei aquele avião fretado das Aerolíneas Argentinas, com aeromoças rabugentas, que parecíam velhíssimas por trás de tanta maquiagem e sorrisos de plástico.

Hoje, quando abro meus emails, não consigo deixar de pensar em como a tecnologia pode, às vezes, guardar algo de divino sob sua capa aparentemente mecânica.

Mas as surpresas da web têm sido ainda maiores. Um belo dia, um lindo dia, estava eu a abrir o Outlook quando vejo, assim do nada, um email que dizia: Azul! Azul! Azul! Achei você!

Na assinatura, Vera Matagueira.

Juro que, se não estivesse sentada, desmaiaria de verdade. E voltei 20 anos no tempo - dessa vez um outro tempo, a época da faculdade de Comunicação em Botafogo, no Rio.

Estudávamos na célebre Facha (Faculdade Hélio Alonso). Nossa turma começou em agosto de 78 e, desde o primeiro período, um grupinho acabou se juntando. Vera Lúcia Lima Matagueira era uma jovem extremamente crítica e animada, de profundos óculos, sempre pronta a contestar e a participar de vários modos. Filha de portugueses, morava no bairro, assim como eu: vivia numa ruazinha que desemboca na Rua da Passagem, e eu, numa vila bem no começo da São Clemente.

Estávamos sempre juntas num grupo que incluia também Ana Lígia, Virgínia, Nilcéia, Astênio, Marquinho e outros. Todo mundo trabalhava de dia em outras coisas. A Vera era uma das únicas que já estava em agência de publicidade; eu, Ana e Virgínia éramos secretárias; Nilcéia trabalhava na saúde e os meninos, em escritório. Quase ninguém estava ainda perto do sonho de tornar-se jornalista, mas era como se fosse; íamos a tudo quanto era debate, assinávamos todo tipo de manifesto, arriscávamo-nos nas cordas bambas da reta final da ditadura militar, desabridos como todo jovem idealista diante de um perigo tentador.

Uma dia Vera, quem diria, apaixonou-se... e resolveu emigrar pra Portugal. Lá foi ela com sua energia, alegria, inteligência e sonhos, muitos sonhos de artista e de mulher. Ficamos todos na torcida, pensando em quando poderíamos cruzar o tanto mar pra visitá-la. Um tempo depois, tristeza e apreensão: alguns castelos por lá desmoronaram, e a amiga deprimia-se. Preocupados, tentávamos consolá-la, mas por telefone ou carta fica sempre mais difícil. Chegamos a pensar em trazê-la de volta fazendo uma vaquinha, mas, com nossos parcos recursos, não conseguimos. A preocupação, o carinho e as cartas continuaram por um bom tempo. Depois, um certo silêncio acabou se instalando.

Lá um dia... AZUL! Chegou a primeira carta boa, claros ventos de Lisboa, uma luz no fim do túnel. Vera rompeu de vez com a tristeza, arranjou um bom emprego, aprumou-se na vida e na alma - e venceu na terrinha! Alegria geral. Por um bom tempo nos escrevemos, telefonamos... mas a rotina e a loucura são inexoráveis, acabam separando as pessoas.

Até que... bem, o resto vocês sabem. O coração está mais azul porque Vera me achou na rede. Com a facilidade e a rapidez do email, estamos juntas quase todo dia. Mesmo com tanto mar pela frente.