sábado, novembro 03, 2007

Belém, a dança e o FIDA

"Batuque", de Fábio de Mello - Abertura do FIDA 2007 - 28/10
Homenagem ao poeta paraense Bruno de Menezes

Foto: Maurette Brandt

A Amazônia dança em minha vida pelas graças de Belém do Pará, cidade pródiga, o seu cheiro quente de vento cortado à tarde pela chuva rápida, generosa. Há muitas calçadas de pedra que, molhadas, escorregam. Mas a chuva de cada dia logo seca, e doce calor embalado pela brisa nos acompanha pelas avenidas largas, da Basílica à Praça da República quase em linha reta. O movimento é grande, a gente, em geral, tranqüila. Conversar é um vício, o paraense justifica a existência do termo boa-praça. E a gente vai andando e vai conhecendo gente, fazendo amigos instantâneos porém verdadeiros dentro da sua instantaneidade. E há as mangas, por toda parte as mangueiras frondosas, exuberantes, amazônicas a seu modo. Fala-se em acidentes, alguém jura que uma pessoa foi parar no hospital com uma “mangada” na cabeça... Ninguém se protege como deve, e a vida convive com as frutas.

Tem muita arte no sangue das ruas, em cada bar há uma linda voz pendurada para secar, um violão, às vezes uma percussão. O talento abençoou esse povo desde sempre. Vê-se no rosto da cidade a linha de um verso, um traço arquitetônico de beleza, um estribilho de canção perdido na pauta do dia. Só Belém tem a mais linda Estação das Docas decorada com os guindastes da antiga estiva, sobraçando o rio Gualmar, igual-ao-mar, uma correnteza barreada de vida, precisa esforço para enxergar os verdes lá da outra margem. Só no galpão dos restaurantes há uma ponte rolante que insistiu em continuar funcionando – e virou palco para a música da terra, que corre de cabo a rabo acima das cabeças, acima do bem e do mal, espalhando felicidade.

Este ano, o meu quinto na cidade por obra e graça do Festival Internacional de Dança da Amazônia, o porto de arte pelo qual atraquei em Belém, ganhei uma medalhinha da Senhora de Nazaré na porta da Igreja. Para mim, um sinal, um batismo de fé. Acho que a famosa Nazinha, como o povo a chama carinhosamente, quis dizer que, de algum modo, já faço parte dali.

Belém combina perfeitamente com a idéia de um festival internacional de dança. E a Clara Pinto – que foi quem inventou toda essa história – sabia muito bem disso desde o início. Já lá vão quatorze anos desde o primeiro; eu cheguei no décimo, mas consigo traçar essa memória a partir dos pequenos detalhes.

Clara Pinto é uma instituição na cultura paraense. Bailarina, Miss Pará, professora de dança e coreógrafa são alguns aspectos pontuais de uma trajetória brilhante como empresária e defensora da arte e da cultura. Há cinco anos testemunho sua dedicação e a capacidade de trabalhar com uma equipe que funciona quase sem palavras. Plantou-se um espírito – e este tem dado frutos bem consistentes.

Durante o FIDA, professores e administradores assumem a produção. E cada um sabe perfeitamente o que deve fazer para que tudo funcione impecavelmente, sem que se perca o sabor da camaradagem, tão mais humano e caloroso do que atravessar um exército de frias regras e minutos contados.

O Festival Internacional de Dança da Amazônia tem sido, para mim, um aprendizado importante sobre a forma de o norte do país viver a dança. No palco do Teatro da Paz, talvez a mais forte das paixões que me ligam a Belém, tenho caminhado com os grupos locais e de outras cidades como São Luís, Macapá, Tucuruí, Fortaleza, Barcarena. Em cinco anos houve crescimento, sobretudo no aspecto da valorização do que brota da própria cultura amazônica e é transportado para os movimentos da dança. O formato do festival é democrático; permite que os participantes concorram ou simplesmente dancem pelo prazer de dançar. Nas asas dessa liberdade descobrem-se coisas incríveis, como o grupo de dança indiana Nataraja, ausência sentida este ano, uma verdadeira jóia.

O importante, no FIDA, é a oferta de referências novas, seja através das oficinas com professores sempre atualizados, seja a partir do trabalho dos artistas convidados. Quem quer se aperfeiçoar, portanto, sempre encontra um caminho.

Nos espetáculos, gosto de me sentar na varanda. Não, por favor, não me entendam mal: varanda, no Teatro da Paz, não é o mesmo que a varanda da nossa casa. A varanda é o principal espaço do teatro, onde as cadeiras são dispostas horizontalmente bem de frente para o palco e ligeiramente elevadas. A platéia fica embaixo, na altura do fosso; as frisas, como em qualquer teatro, estão nas laterais. A melhor visão frontal é, portanto, a da varanda. Dali acompanho, apreensiva, as apresentações dos grandes amigos e, com permanente curiosidade, o trabalho dos artistas novos no festival. Vale o destaque, este ano, para a dupla argentina Natalia Pelayo e Federico Fernandez, que deu um show no clássico e no contemporâneo. E também para Ellington Gomes, um dos mais perfeitos bailarinos desse tempo recente, que faz parte do corpo de baile do Municipal do Rio e este ano fez par com a já veterana Cláudia Motta, uma das primeiras-bailarinas do Theatro Municipal.

Mas uma coisa que me encanta é a azáfama de centenas de bailarinos pelos corredores do teatro milenar. As escadarias com seu décor em bronze e balaustradas polidas só fazem rir, em sua sabedoria; as estátuas fazem troça. Os lustres de ferro e cristal só aceitam ser apagados ao som da Protofonia do Guarany. E os espelhos se comprazem em cultivar o seu dom de iludir. No fundo, protegem os pequenos e grandes artistas com o seu manto de tradição e leveza, desejando que sejam felizes no palco, no seu palco, assim como na vida.

Sou mesmo uma pessoa chegada a rituais. Ao aproximar-se o final de outubro, todos os anos, começo a entrar no ritmo dos rituais do FIDA: a chegada a Belém, o carinho do Waldir, da Ana Clara e da Lorena, o reencontro com o amigo e vizinho Fábio de Mello, o imensamente talentoso coreógrafo que dirige o Festival e me carregou pra Belém há cinco anos, e com Fred Salim, bailarino, coreógrafo e meu par constante na cidade desde 2003... São muitas pessoas, detalhes, instâncias que são vividas com imensa alegria a cada ano. Como a apresentação dos grupos folclóricos, na tarde-noite de sábado, uma emoção renovada, apesar de a popularização da chapinha ter feito um estrago nas charmosas dançarinas de carimbó e síriá. Fica o protesto, em prol dos belos cachos naturais injustiçados.

O FIDA, para mim, traduz-se em pessoas como Edna e Eliana, as super-produtoras, incansáveis em cuidar da logística e da infra-estrutura. Lenita e Jussara, revezando-se entre a Escola e o Teatro da Paz; Graça, no subcomando geral, resolvendo tudo com a classe e a fleuma que lhe são peculiares. Elade, a nova secretária, muito simpática e presente. Rosana, Paula, Tereza, Therezinha e muitas mais, coordenando som, luz, ensaios e os outros vários palcos do Festival – Iguatemi, Teatro Margarida Schivazzapa, Pólo São José Liberto e Praça da República, este no domingo final. E fechando o circuito, Clara Pinto com olhos de lince e um cuidado enorme com o processo inteiro.

Não é à-toa que Ana Botafogo e Carlinhos de Jesus, por exemplo, adoram estar lá todos os anos. No FIDA, quem chega entra logo para a “família” e só quer saber se, no ano que vem, vai voltar para os braços de Belém, nas asas da dança e para o seio de um trabalho que, sem dúvida alguma, é referência na Região Norte do país.

quinta-feira, outubro 11, 2007

Sanduíche dos mais caprichados

Fotos: Divulgação

O sabor é excelente, o pão cheira a recém-saído do forno (aqueeele cheiro que é melhor do que o gosto do próprio pão), a manteiga é fresca, e a mortadela... bem, a mortadela é aquela mesmo da infância, com uns pontinhos escuros de pimenta-do-reino, clarinha e com muito pouca gordura. Enfim, temos aí uma iguaria de primeira qualidade: Pão com mortadela, a peça, inspirada na obra de Charles Bukowski.

A literatura beat toma o palco carioca num momento bom. É preciso rechear com referências importantes o vigor e a ansiedade dos jovens talentos. E Pão com mortadela está cheio deles, carinhas novas com todo gás, que mostram um bom entendimento do espaço teatral e da teatralidade em si. Por trás, pela frente e pelos lados, um bom diretor com estilo (João Fonseca). Cenários e figurinos práticos e inteligentes ajudam a história a fluir, com um eficiente revezamento do pequeno elenco em múltiplos papéis.

O "maldito" Bukowski conta, em Ham on Rye, obra que inspirou a peça, a sua infância, adolescência e um pouco da vida adulta, num texto que mais ou menos o explica para o mundo. A apropriação mais que justa que João Fonseca fez do livro, ao transpô-lo para o palco, apresenta as situações em algumas dimensões apenas, deixando ao público o benefício de construir, com a imaginação, as outras que as completam. É meio como ler um livro em que os personagens, de tempos em tempos, acordam e vivem a cena diante da gente.

Os jovens rostos apaixonados que vemos no palco são talentosos sem distinção. E todos têm o seu grande momento em cena, de modo que o que passa é uma valorização de cada um no que tem de melhor. Não conseguimos esquecer nenhum deles, ou lembrar mais de outro - mesmo a peça tendo um excelente protagonista, Sacha Bali, que vive Henry Chinaski, o alter-ego do escritor.

Acho bonito ver a força que jovens vozes dão ao texto. Não posso deixar de me lembrar que, há muitos anos, num pequeno teatro de colégio na Tijuca, assisti a "O Despertar da Primavera", de Frank Wedekind, com um elenco jovem que daria o que falar: Miguel Falabella, Maria Padilha, Fábio Junqueira, Daniel Dantas, Paulo Reis... É a mesma coisa, a mesma chama flamejante, o mesmo ciclo dos tempos renovando as forças do teatro. A sensação de frescor, de que o minuto seguinte não existe, portanto é preciso viver este, agora, com tudo o que se tem dentro.

Quando resolvi escrever dei uma passeada pelas críticas da peça disponíveis na internet. Numa delas o autor queixa-se de problemas de tradução, e diz que a peça nunca poderia chamar-se Pão com mortadela porque o título em inglês é Ham on Rye (Presunto no centeio, referência explícita à obra mestra de J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio).

Quero discordar. Aliás, chamou-me a atenção justamente a criatividade desse título. E não por qualquer abrasileiramento da obra: porque todos os retratados eram crianças americanas mais ou menos pobres (o próprio texto ressalta esse fato, na voz do personagem: - Meus pais não se achavam pobres...), numa época pobre (o período pré e pós Grande Depressão, nos EUA). E a mortadela - uma comida "de pobre", para os padrões daquele tempo - existe lá; atende pelo genérico nome de "Bologna" e, acreditem, não é gostosa como a daqui. Pão com mortadela, portanto, é plausível dentro da situação retrada. E muito mais fácil de ser prontamente digerido enquanto título.

Os atores, além de ótimos e com amplas possibilidades de exibir, cada um, os seus diferenciais no palco, têm uma agilidade incrível na troca de papéis, com um figurino que realmente favorece isso. Os tons sépia escolhidos pelo cenógrafo e pelo iluminador são perfeitos para criar o clima de época sem que o todo perca vitalidade.

O relato emocionante de Bukowski é vivido com a melhor dose de emoção, mostra clara de que existe, entre elenco e direção, uma fé verdadeira na importância de se dizer aquilo que está sendo dito, justamente nesse momento e nesse lugar.

O que posso dizer é que curti muito, senti no rosto e na alma os ventos novos que chegam, com determinação e talento. De fato, este foi o melhor sanduíche teatral que tive a chance de provar em muito, muito tempo.

domingo, setembro 30, 2007

Jorge Palma no Metrô de Lisboa




Para quem ainda não conhece este génio da música popular portuguesa - ou melhor, do mundo - vai aí uma matéria jornalística que fala muito dele.
Na minha opinião, Jorge está para a música portuguesa assim como Chico, Caetano, Milton, Edu, Baden e outros estão para a música brasileira.
Não tê-lo conhecido ao longo dos mais de 30 anos que está na estrada é uma perda que só não reputo como irreparável porque ainda há como remediar: é sair vorazmente em busca da obra desse fantástico cantor, compositor, arranjador e instrumentista.
De cara dou as dicas para quem gosta muito de música e quer ser mais feliz ainda: vale pesquisar no eMule, baixar tudo o que for oferecido e visitar os sites abaixo.
Boa "viagem na palma da mão"*!

http://bloguepalmaniaco.blogspot.com

http://www.jorgepalma.web.pt

* Título de uma canção de Jorge Palma

quinta-feira, setembro 13, 2007

Era um dia, era claro, quase meio

Acabo de dirigir, com a amiga Cleide Salgado, um festival de cinema. O I CINEMÚSICA - que já em sua primeira edição chega com a responsabilidade de ser o primeiro festival do Brasil voltado para as áreas de som e música - colocou a bucólica Conservatória, no Estado do Rio, em polvorosa. Durante o feriadão (6 a 9 de setembro), o número de pessoas na cidade foi muito além do esperado para uma localidade que vive do fluxo turístico normal gerado pela serenata, com direito a pane nos restaurantes locais - que, mesmo acostumados a feriados movimentados, não conseguiram dar conta dessa vez. Ao todo, 20 longas e 24 curtas passaram pelas telas do Cine-SESC (na Praça da Matriz), do Cine-Tela Brasil (no largo da Rodoviária) e do Cine Centímetro (uma perfeita miniatura do falecido Metro-Tijuca, com apenas 60 lugares). Tudo o que o cinema fez em Conservatória tinha alguma coisa a ver com a música, de modo que... o nome CINEMÚSICA! foi a escolha mais natural do mundo. De quebra, os shows incríveis dos grupos Vale dos Tambores, Panela di Barro, Música DesConcerto e, no domingo, da Orquestra Sinfônica do Projeto Música nas Escolas, de Barra Mansa.

Num dos raros momentos em que consegui sentar para assistir alguma coisa, ganhei logo o melhor presente: Edu Lobo, documento inédito, direção de Regina Zappa. A diretora, jornalista mais que conhecida e reconhecida, é casada com um grande amigo meu, o arquiteto e designer Túlio Mariante. E o nosso encontro, ainda que há muito prometido, só veio a acontecer em Conservatória.

Confesso meus engasgos enormes durante o filme. As hábeis e sutis escolhas de Regina para registrar a vida e obra desse gênio algo injustiçado da nossa música velejaram por entre lembranças muito queridas, que acabaram mesmo por me marejar. Uma voz e um violão para Cordão da Saideira, recortes em clima de festival para o apogeu de Ponteio, com Marília Medalha, a verdadeira história da agonia de Torquato Neto refletida na letra, em parceria, de Pra dizer Adeus...

Edu, ainda um menino quase, em muitos momentos; em outros, cada vez mais parecido com o pai, Fernando Lobo, que ainda conheci nos últimos tempos de TVE. Edu e sua imensa musicalidade, sua enorme parte na história da música brasileira da geração imediatamente anterior à minha, e que acabou por misturar-se à minha. Edu com seu inconformismo na ponta das letras e no fundo da melodia, com seu jeito de bom moço levando a sério o que era para levar. E Edu hoje, com a mesma profundidade e o mesmo talento, filhos, discos, livros, amigos.

Regina soube contá-lo, registrá-lo, transparecê-lo bem para quem, pela pouca idade ou o muito descuido, não teve a chance certa de o conhecer. Vê-se em sua direção o pulso jornalístico que no entanto deixa a emoção sobrenadar, conduzir a narrativa e confluir para belos reencontros, com a atualidade necessária para contar o que deve ser contado sem cair em excessos ou embotar a verdade básica do que a obra de Edu Lobo representa, dentro da nossa música.

Edu Lobo foi uma grande felicidade dentro da correria do I CINEMÚSICA. Além de nos prestigiar com uma estréia nacional, Regina Zappa foi mais do que justa com o biografado. Foi justa e generosa com a música do Brasil e com as gerações e gerações de brasileiros que necessitam desesperadamente de conhecê-la em profundidade, para dar-lhe o devido valor.

Me lembro tanto e é tão grande a saudade, que até parece verdade que o tempo inda pode voltar... O tempo de Regina Zappa em Edu Lobo não só volta na medida certa como sabe seguir em frente, com rumo certo e passo forte, para celebrar o que Edu Lobo, hoje e sempre, tem de melhor.

sábado, agosto 11, 2007

Deusa pagã dos relâmpagos


Os mesmos pés descalços, o mesmo leve gingado que, no auge dos anos, enlouquecia a todos... e bem menos timidez do que naquele início do início, no Teatro Opinião, de coque na nuca e roupa preta, aquele fatídico início que nos condenou a amá-la para sempre.
A mesma doçura na voz nos momentos doces, abandonados... e a mesma fortaleza numa voz já outra, na hora de levantar o canto guerreiro, o canto do peito aberto; as mãos que firmam passo e dançam acima da cabeça, o olhar que brilha e nos atravessa com a sua espada da lei, da lei do encanto com que nos prende e nos leva, leva, leva, leva, beta, beta, Betha, Bethânia, Bethânia de todos os ventos, deuses e vagas do mar.
O mesmo tudo que é sempre todo novo. Bethânia é sempre nova e linda, é sempre menina e senhora do engenho, com palavras que sempre batem bem fundo no coração de quem, anos a fio, limpa num pano de prato, no guardanapo, no xale do vestido, as mãos sujas do sangue das canções que dela vêm, e pra ela voltam entre rasgos de poesia e a ondulante maresia que procura dentro um rio, um rio feito de música e de água também.
A Bethânia que nos toma a todos ao primeiro acorde, antes mesmo do primeiro aceno, antes mesmo de aparecer, é igual - e melhor - com os anos. Os fartos e naturalíssimos cabelos, que um gesto aparentemente simples joga para trás, a envolvem numa espécie de moldura luminosa, um halo de energia que a clareia inteira. Bethânia, faceira e menina, senta-se com o povo no meio-fio para puxar as cantigas de ninar mais esquecidas, mais guardadas no fundo da memória. E aquela Bethânia de ventos e raios, que com um único gesto sabe bem arrebatar milhares, irrompe em meio ao nosso silêncio com mimos de Luiz Gonzaga, com ventos de Caymmi a mover os barcos, com auroras de Chico Buarque a acordar amores. Linda e visceral nos vermelhos da saia de ares cuzquenhos, ou doce e saltimbanca num visual mais nostálgico, branco, profundamente circense.
Essa Bethânia criança e mulher reinventa-se igual, mas respira o novo em nossa nuca, acorda-nos com poesia, convida-nos à roda. E vamos todos, ora em coro, ora em silêncio, ao comando da rainha do cordão encarnado.
Bethânia foi sempre assim, a Natureza em technicolor e dolby stereo. Com o seu jeito todo exuberante de explicar o mundo sílaba a sílaba, palavra por palavra, meticulosa como um ourives atento ao mais microscópico detalhe da peça que cultiva como se tivesse vida.
Amiga íntima, quase parente, conta todas as nossas histórias, desfia os rosários e nos mostra, na janela do tempo, a nossa própria alma lavada, perfumada de música e sentimento, recendendo às águas de colônia da infância, aos limões de cheiro de que apenas ouvimos falar um dia, aos pães quentes das pretas velhas, à fuligem das fogueiras ao pé das quais chamamos assombrações, os olhos escuros de medo, as mãos dadas na noite.
Bethânia solta e só, diante da coragem da vida. Despida dentro do branco das vestes, todas as cores da alma nas mãos, inteira e pronta para chamar o vento. O mesmo vento que balança as ondas daquele mar, daquele mesmo mar em cujo fundo há um rio. Rio que nasce na garganta dela e encontra as águas naqueles olhos que podem, se quiserem, parar o tempo.

domingo, julho 22, 2007

Um minuto... e o silêncio

Temos de deter este mundo de sentimentos descartáveis.
Com nossa honra verdadeira, que não encontra um jeito de existir com a velocidade com que as informações substituem os valores no espaço-tempo.
Temos de lembrar que um menino de apenas dez anos foi destroçado por bandidos em alta velocidade, pelas ruas do Rio de Janeiro, sem qualquer razão.
Era filho de alguém. De alguém que sofre, chora, tenta entender mas está marcado para sempre.
Temos de lembrar que, há 11 anos, muitas pessoas com sonhos, ideais, famílias, filhos pra criar, morreram carbonizadas num acidente com um avião da TAM, no Aeroporto de Congonhas.
É preciso lembrar que, apenas em setembro passado, mais de 150 pessoas morreram num acidente com um avião da Gol, que colidiu com um jatinho particular.
Mesmo que não quisermos, a vida nos sacode e nos atira contra a duríssima realidade: há menos de uma semana, outras 200 pessoas morreram num terrível acidente com outro avião da TAM.
Podemos rezar por elas, podemos dedicar-lhes um minuto de silêncio. Com essa boa ação, nossas vidas talvez não mudem.
Mas temos de lembrar que a vida de quem perdeu essas pessoas mudou para sempre. Temos de lembrar dos buracos abertos, de tudo o que se interrompeu e foi bruscamente arrancado de todas essas famílias.
Podia ser com um de nós. Está cada vez mais fácil, aliás, de acontecer com um de nós. Estamos todos à beira da tragédia, cada dia mais perto.
Não podemos sair à rua com a família, num carro antigo.
Não podemos confiar na famosa segurança dos nossos céus. Não temos mais uma estrela brasileira no céu azul, iluminando de norte a sul. Não temos mais autoridade, nem exemplos a seguir. O que vemos é o descaso, o descaramento, o descompromisso, o desacato à nossa autoridade de cidadãos que sustentam a máquina podre do governo.
Roubaram nossos ideais mais profundos e sinceros. Primeiro foram os militares, que acreditavam estar - e de um certo modo estavam - acima do bem e do mal. Sua herança funesta foi a impunidade mais perfeita, que nem o suposto fim da ditadura conseguiu apagar. Ao contrário, na suposta liberdade ela se fortaleceu ainda mais, nos espaços muito bem arquitetados pelos filhos do regime transfigurados em neoliberais.
Os modelos autoritários prevalecem ainda. Seus tentáculos estão em todos os lugares, nas empresas públicas e privadas, nas instituições supostamente sociais,culturais, naquilo que supostamente é para o povo.
Enquanto ministros brigam por poder, enquanto controladores de vôo brigam por salários, enquanto as empresas de aviação "flexibilizam" a manutenção, enquanto as polícias civil e militar discutem território, enquanto governadores disputam as atenções do governo federal, a vida não pára de acontecer. As contas não param de vencer. As empresas não param de demitir. A economia não pára de esvair-se. E as aeronaves, nos céus do Brasil, nas pistas de pouso, nos contactos com as torres de controle, não param de arriscar muitas vidas. Todos os dias.
O que vamos nós fazer? Estamos mais mudos do que depois do AI-5. Em vez de lutar por cidades livres, cercamo-nos de grades. Em vez de bater panelas nas ruas como faz o intrépido povo argentino, encolhemo-nos em teses, desculpas, desvios. Em vez de demitir governos que não cumprem as atribuições do cargo - como qualquer empresa faz com um funcionário que não passa pelo período de experiência - pagamos para sofrer, para ser discriminados, engolidos pela máquina, para não ter atendimento médico e morrer, como aconteceu recentemente a uma jovem grávida, a percorrer as emergências sem socorro.
Olhamos para os escândalos de corrupção com uma naturalidade patética. Todos os dias, o dinheiro roubado pelos poderosos falta à mesa de alguém. Os nossos milhões de miseráveis, as crianças que fazem malabares nos sinais de trânsito ou humilham-se nos lixões, os flagelados das secas que já poderiam ter acabado de vez, só são lembrados como fonte de captação de recursos para projetos sociais que nem sempre são soluções. Enquanto uns poucos conseguem estabelecer uma honesta frente de luta contra os problemas, muitos vivem às expensas deles.
Desconhecemos o nosso poder. Todos os meses, é do nosso salário que sai o dinheiro que financia o circo em que vivemos. E se não quisermos mais pagar? E se quisermos fiscalizar? E se, de repente, quisermos a lei? A verdade, a justiça? A liberdade?
Nunca estivemos pior. Nunca se morreu tanto. Nunca perdemos tantos adolescentes entre 15 e 24 anos para a absurda guerra do tráfico. Até quando vamos aceitar isso?
Quando é que a sociedade vai se organizar para romper esse círculo doentio?
E se no Brasil se desencadeasse, de repente, uma série de processos contra o Governo por malversação do dinheiro público? E se nós, cidadãos, decidíssemos processar os órgãos arrecadadores dos diversos tipos de impostos que pagamos, exigindo que prestem contas do uso do nosso dinheiro?
Mesmo que a lei tenha brechas, mesmo que haja juízes corruptos, ainda assim existem leis escritas que nos garantem o direito de fiscalizar a máquina pública. Uma onda de processos dessa natureza desnortearia o sistema e poderia, talvez, deter - dentro da lei e da ordem, como pregava Ghandi - a marcha da impunidade absoluta, do deboche e do desrespeito à população.
Se há órgãos públicos que podem intervir numa instituição e saneá-la, por que é que nós, os financiadores, não podemos intervir em órgãos públicos que lesam o patrimônio comum?
Está mais do que na hora de nos unirmos para caminhar nesse sentido. É preciso sanear o país, e renovar os ideais e valores que devem prevalecer sobre o caos. E só a população, enquanto maioria esclarecida, é que pode operar essa transformação.

domingo, julho 15, 2007

Pelas palavras


Repara; é nesse terreno movediço, furta-cor, que passaremos quatro dias e horas sem fim a ouvir histórias, acalentar palavras, enxergar algumas pessoas especiais bem de perto, como se usássemos luz de leitura.

É a quinta FLIP. Um fenômeno de público num país de funk e produtos "culturais" descartáveis. Onde milhares de pessoas de todas as idades se acotovelam em filas para estar frente a frente com escritores, sejam eles novos ou consagrados. Para vê-los de perto transformados em gente como a gente, que dorme-acorda-e-come-e bebe-e-erra, enfim, que existe mesmo.

Festa Literária Internacional de Paraty, ou simplesmente FLIP... Uma sigla e uma brincadeira, talvez, com o sentido do vocábulo em inglês; soltar algo no ar (e ver o efeito que dá), ou virar (como se viram as páginas de um livro), definições que também combinam com o espírito da festa; joga as palavras pro alto, vê onde caem e vai lá conferir se germinaram. Ou então pega um livro, folheia e vê se encontra alguma coisa que te faça saltarem os olhos.

O que a FLIP tem jogado no ar, cai em solo fértil. E, se depender das crianças de Paraty, floresce com todo o vigor. Desde os bonecos em papier-maché que elas confeccionam, todos os anos, para enfeitar a Praça da Matriz até a Flipinha, a vitoriosa edição infantil do evento que está sempre lotada de pequenos leitores apaixonados, o ano inteiro loucos pra estar lá e não perder um só minuto das histórias, cantigas e alegrias que os esperam.

A FLIP é um recheio e tanto, para quem lê e mesmo para quem ainda não tem lá tanta intimidade assim com esse estranho e querido objeto chamado livro. Lá nos abastecemos de temas e questões que ficamos o ano inteiro a tecer e a deslindar. Lá olhamos nos olhos de quem nos embala os sonhos, entendemos melhor o mundo real que vira literatura, podemos estar frente a frente com um correspondente de guerra ou um menino soldado, como o brilhante Ishmael Beah, 26 anos e a velha chama no olhar, este ano. Podemos ouvir o lamento de um poeta palestino e sentir a força de um humanista israelense. Podemos vislumbrar as várias Áfricas do Sul, as Austrálias, as Luandas, os Maputos e os Cariris como se fossem uma só coisa.

Na FLIP os Brasis e os mundos são iguais, ou melhor, são igualados nas virtudes e mazelas que fazem a realidade, e também na força da sua ficção. Aprende-se muito sobre as diferenças e o que elas têm em comum. Há mais boas surpresas do que as poucas decepções, e a gente faz muitas promessas aos livros que lê, aos depoimentos que leva no coração. A FLIP é uma festa de noivado, onde a gente renova todos os anos o compromisso de amar e respeitar a nós mesmos, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, e em todas as páginas que lermos com o coração aberto e a alma sempre, sempre inquieta.

sexta-feira, julho 13, 2007

Elza, um hino nacional


Abertura dos Jogos Panamericanos 2007, no estádio do Maracanã. Expectativa em toda parte. Milhares de olhos grudados na tv, milhares de pessoas enchendo o estádio ou aguardando, pacientemente, nas filas de entrada, para passar pela segurança. O Pan do Brasil.
Organização impecável, luzes, aparato. Momento solene anunciado em três idiomas, espanhol, inglês, português: o Hino Nacional Brasileiro.
O chão do palco se abre para erguer uma única voz, com um único microfone, para ecoar sem acompanhamento nos quatro cantos do estádio e do planeta e levar ao mundo o nosso hino, aquele que nos endireita as costas, leva a nossa mão ao peito, fecha os nossos olhos em devoção mesmo quando engasgamos com alguma sílaba.
Essa única voz, ou melhor, essa voz única, é a de Elza Soares.
Talento inacreditavelmente grande, coração talvez maior ainda. Menina cuja primeira boneca, aos treze anos, foi a própria filha. Menina que driblou o morro e as tristezas com sua voz de gramaturas nunca dantes conhecidas e uma alegria que não combinava com a vida tristonha de criança de favela.
Mulher que fez do instrumento musical que carrega na garganta uma bandeira brasileira em mil tons de verde-amarelo.
E que amou muito, viveu muito, deu-se muito como ser humano, artista, mãe, mulher, de tudo um muito.
No centro do gramado do Maracanã, um gramado pisado centenas de vezes pelos pés tortos e felizes do homem que talvez mais tenha amado na vida, Elza Soares nos fala de Brasil de um jeito que ninguém falou antes. Cada sílaba roufenha, metálica, suave ou retumbante é sentida, é concentrada, é madurada no pé e distribuída com força, mas de um jeito contido, como uma reza de mães-pretas para afastar mau-olhado, como um lamento do fundo do coração da floresta, do rio, do mar, das fontes murmurantes. Elza toda ela uma oração.
Anunciada como a esposa de Garrincha, Elza Soares recebeu hoje uma merecida dupla homenagem: a reverência e o reconhecimento do Brasil ao seu imenso talento e à forma como sempre se doou, na arte como na vida. E o respeito que merece por ter sido a grande companheira de Garrincha, a pessoa que mais esteve ao seu lado, cuidou, protegeu-o de si mesmo. Um país que ama os ídolos do futebol como o Brasil devia isso a ela, que tão mal compreendida foi, para dizer apenas o mínimo.
Elza Soares, magnífica, transformou-se no Hino Nacional. Sozinha no campo, com sua voz e o sentimento do mundo, foi rainha. A acompanhá-la, um coro de milhares de vozes. O seu rosto devoto, dramático, não denunciava o que lhe passaria pela mente naquele momento em que o Maracanã e o povo jogavam com ela, em que teve a posse de bola e lhe foi permitido fazer, ela própria, as mais incríveis bicicletas que as cordas vocais lhe permitiram.
Com as bênçãos do Mané Garrincha, que com toda certeza sorria todo orgulhoso do fundo do gramado...

segunda-feira, junho 25, 2007

Um só sangue, três brasileiros


Sou chorona, é fato sabido. Mas há tempos não chorava como devia, como eu mesma me devia. Sem afogar os anos e o coração de estudante que deixei pousado na década de 80, bem à beira do poço das esperanças de um país melhor.
Há tempos não chorava como ao ver "Três irmãos de sangue", o poema amoroso em forma de documentário sobre Henfil, Betinho e Chico Mário. Dirigido por Angela Patrícia Reiniger, uma jovem que, de tão jovem, decerto não viveu as vidas e histórias que tão bem soube contar.
Angela soube descortinar a vida brasileira e suas lutas, dores e pequenas vitórias, através da história dos três irmãos que deram tudo ao seu país, cada um na sua frente de batalha, sem entrega, sem trégua.
Foi como se o filme da nossa vida passasse na nossa frente... Só que não era sonho ou experiência de quase-morte, era um filme mesmo, a nossa vida ali rasgada, aberta, descosturada, sofrida - exposta sem qualquer anestesia, mas com beleza, compaixão, perspectiva histórica.
Penetrar na intimidade da família de oito irmãos e todos os homens hemofílicos, ver as irmãs lá, tão corajosas, contando as histórias de cada menino, dos pais, da vida deles, foi como tomar café na cozinha da casa. E sacudir a cabeça como quem entende, como quem viveu tudo aquilo como os três fossem um pouco da gente.
E são. Passei anos nas asas da Graúna e nos braços do Bode Orelana, do Severino e do Fradim. Lê-los era o ritual sagrado que exorcizava um pouco os fantasmas que nos perseguiam naqueles tempos. Em 1986, quando fui selecionada para o primeiro Curso de Jornalismo que a Rede Globo promoveu, o Henfil foi um dos palestrantes. Nesse primeiro contato enxerguei um brasileiro antenado com seu tempo, comprometido com os ideais de justiça e liberdade. O filme falou abertamente do seu desencanto com o aborto das diretas e a eleição de Tancredo Neves, e disso me lembrei bem: em sua fala no curso, ele considerava Tancredo um traidor dos ideais democráticos e da pátria brasileira, que manipulara o processo desencadeado pela campanha Diretas Já! em benefício próprio.
Os detalhes da vida do Henfil, contados pelas ex-mulheres, a viúva, as irmãs e amigos com uma serenidade incrível, tocaram fundo. Assim como o depoimento da mulher de Chico Mário e do filho. E também da ex-mulher e da viúva de Betinho, e dos filhos Daniel e Henrique. Por falar em filhos, Angela Patrícia construiu uma linda cena com imagens antigas do filho do Chico, ainda pequeno, e sua voz gravada sobreposta a outras imagens, mais tristes, do então adolescente no enterro do pai. Pouco antes há um depoimento do menino, muito forte, determinado e cheio de esperanças, na época da descoberta da doença do Chico Mário. O contraponto lembrou as cenas finais do filme Filadélfia, que desfilam imagens enevoadas do protagonista ainda menino, andando de velocípede despreocupado... Isso é cinema, é saber apropriar-se com respeito de detalhes que enriquecem, comovem e ficam pra sempre na nossa memória afetiva.
Tudo... as cartas da mãe, a emoção do Ivan Lins ao falar do Chico Mário, a presença forte do Ziraldo, do Aldir Blanc, do João Bosco e de tantos amigos, famosos ou não, que trouxeram para o filme uma verdadeira profissão de fé na nossa história, um orgulho de terem compartilhado a vida e a militância com três brasileiros tão profundamente éticos, talentosos e humanos.
Rever a chegada dos exilados ao som do hino "O Bêbado e a Equilibrista" foi voltar no tempo e, por um fugaz momento, acreditar de novo que ia dar certo, ia sim dar certo, teríamos um futuro após 21 anos de opressão, sem saber que, outros 20 e tantos anos depois, ainda estaríamos à procura desse futuro em meio à banalização dos valores, reféns do tráfico e da corrupção e sem coragem mesmo de empunhar novas bandeiras, com a casa inteira por arrumar e sem saber por onde recomeçar.
Vi Betinho uma só vez. Ia de carro do Rio para Barra Mansa e paramos no Bob's do Belvedere Viúva Graça, como era costume. E aí vi Betinho em sua simplicidade, parado na calçada a poucos passos de mim, o filho menor por perto. Lembro que pensei comigo: puxa, é a primeira vez que me vejo diante de um herói de verdade. Um herói do nosso povo, em carne e osso e com seus olhos fundos de verdade e jeito de mar. Jeito de gente. E não tive gesto nem jeito de me aproximar. Um herói é um herói... resolvi guardar-lhe a imagem do lado esquerdo do peito. E só.
Não me contive. Ao final da sessão, estendi os braços para Angela Patrícia, essa menina de valor, talento e consciência. Foi um abraço feito de saudades do que vivemos e que ela, mesmo não vivendo, nos devolveu da melhor maneira.
"Três irmãos de sangue" tinha de ser exibido em todas as escolas do país, para que cada criança soubesse que ainda há coisas em que vale a pena acreditar, e pelas quais vale a pena lutar.

sexta-feira, junho 22, 2007

Transfor-Tango


Gotan quer dizer "tango". A inversão silábica parece ser uma moda recente na Argentina. E se repetirmos sem parar - go-tan-go-tan-go-tan-go-tan - acaba sendo mesmo tango. Pelo menos é a isto que o Gotan Project, grupo que mistura elementos tradicionais e eletrônicos, projeções mirabolantes e um jogo de cena muito bem estruturado - se propõe: divulgar o tango argentino, sob o comando de um D.J. com sotaque francês.
Num Canecão lotado como eu não via desde a década de 80 pelo menos, o grupo desfilou seus apoteóticos números musicais com muito ritmo e vivacidade. Um cello, três violinos, piano, violão, voz, bandoneón (claro, não podia faltar), além de um D.J. e um programador/tecladista por trás de uma plataforma alta. Projeções enormes ao fundo, por cima dos músicos, pra todo lado: rostos duplicados, casal dançarino duplicado, paisagens, situações... um mosaico em alta velocidade que por vezes chegava a dar tonteiras.
Senti calafrios. E sono, muito sono, após os dois primeiros números. Aquela insuportável batida eletrônica, bat-bum, bat-bum, a rodear cada acorde, cada instante em que o tango parecia real, o jogo de luzes e configurações calculado com precisão absoluta, com o dom de iludir. E as pessoas, extasiadas.
Lembro-me de ter ouvido Piazolla dizer, num dos espetáculos que tive o privilégio de assistir: - Este é o novo tango, que revolucionou a nossa música. E pelo qual muita gente me critica, mas que é a coisa mais moderna que existe hoje no gênero.
Piazolla mudou o tango, sim, mas mudou com gênio, intensidade, poesia. E não deixou pedra sobre pedra, e no entanto a essência permaneceu e firmou-se definitivamente como o retrato mais fiel da alma argentina.
Enquanto ouvia entre bocejos o Gotan Project, pensava que, para mudar o tango, precisa ser um Piazolla.
Os bons músicos que compõem o grupo estão muito longe disso. À exceção do pianista, este sim um virtuoso quase que completamente obscurecido pela parafernália eletrônica, os outros faziam bem o seu trabalho, mas não despertavam nada de extraordinário, nenhum rasgo no coração sequer parecido com o estrago que faz um único acorde de "Adiós Noniño"...
O Gotan Project é um projeto comercial bem-sucedido, a julgar pela quantidade de gente que apinhava o Canecão e por sua recente turnê européia, orgulhosamente anunciada pelo D.J. francês, fundador do grupo. É um produto típico do falso entendimento de que, para apresentar um ritmo original, nativo e forte, é preciso pasteurizá-lo ao gosto americanizado e vendê-lo como se fosse de verdade.
Em alguns - raros - momentos, quando desligavam o baticum, subtraíam o excesso, abandonavam as projeções e ficavam só no piano, bandoneón, voz e violão, aí sim a minha alma despertava, e eu me sentia perto do tango-sangue que aprendi a amar.
Sinto, mas não posso louvar o projeto, a apropriação indébita e desqualificada que fazem da música-marca de um povo. É um corpo estranho, uma visão patética e muito bem embalada, uma pantomima de luxo que não faz jus à bandeira que pretende defender, mas que não defende. Simplifica, reduz e publica no YouTube, para ser descartada logo a seguir.
O Gotan Project é pouco, pouco demais para o tango.

quarta-feira, junho 20, 2007

Taiguara


Uma tarde qualquer, lá pelas quatro, eu no computador e um longínquo pagode a emanar de algum vizinho. Bocejos na alma, a tolerar aquela mesmice... Mas de repente o mesmo já não era tão mesmo assim: entrou pelo quarto a música Viagem, do Taiguara, e eu me assustei feliz.
Taiguara... Um moço tão íntegro, tão cálido e lírico, talvez o primeiro a cantar as esperanças da era do amor livre... Que sabia como ninguém tecer sonho, poesia, letra e música em algo que falava, de fato, àquela juventude da qual eu fazia parte. Lembrei-me de seu rosto sincero à frente do microfone em tantos, tantos festivais... Modinha, Helena Helena, Universo no Teu Corpo...
Taiguara. Que bem aquilo me fez! Corri então para os braços da abençoada tecnologia e fui escavar o eMule à procura dele. Batata! Tava tudo lá, inclusive uma das canções mais lindas que já ouvi na vida, e que ele tão brilhantemente defendeu (é assim que se dizia) numa das primeiras edições do Festival Universitário da Canção Popular: Nada sei de eterno, de Aldir Blanc e Silvio da Silva Jr.
Os Festivais Universitários revelaram Aldir, Silvio, Ivan Lins, César Costa Filho e uma infinidade de outros grandes da nossa MPB. Eram todos integrantes do MAU (Movimento Artístico Universitário), a primeira grande insurgência estudantil contra a indústria cultural, já então selvagem. Deu certo, o Brasil ganhou, a juventude ganhou, porque tudo naquela época, afinal, era bandeira pra gente.
Essa canção, gravada pelo Taiguara, ficou em mim a vida inteira. Lá pelas tantas da década de 80, para ajudar uma amiga cantora, lembrei-me dela e fui pedir ao Aldir autorização para que a moça a cantasse. Alguém me conseguiu o telefone dele e expliquei a situação. - Olha - disse o Aldir - eu nem tenho mais esse disco, só a minha mãe é que tem. Faz o seguinte: vai lá em casa no dia tal que alguém te leva até a minha mãe e você pega emprestado.
Fui à casa dele, em algum lugar da Tijuca. E uma de suas filhas, que devia ter uns dez anos, foi comigo impávida até a casa da avó, pertinho, no máximo umas duas quadras.
A mãe do Aldir já sabia e recebeu-me à porta. Foi à estante e pegou um daqueles compactos duplos com capa plastificada - era cor de laranja - e entregou-me com um suspiro. - Olha, eu tenho muito ciúme desse disco, esta é a música do Aldir que eu mais gosto. Por favor me devolva o mais rápido possível, tá?
A essa altura eu já estava com remorsos, pois senti que lhe doía separar-se daquele tesouro. (Eu bem sabia que era um tesouro.) Levei o disco pra casa com mil-e-um cuidados, gravei (numa fita cassete, lógico, é o que se tinha) e devolvi no dia seguinte.
Ensinei a música à minha amiga cantora e guardei a fita para curtir em casa. Às vezes até levava para o trabalho para ouvir num daqueles gravadores pequenos, de jornalista. E assim foi, até o dia em que esqueci a fita no escritório e uns amigos meus, engraçadinhos, resolveram escutar. E desgravaram! Desgravaram sem querer!
A princípio fiquei atônita. Custei a acreditar. Depois de toda aquela viagem pra ter a música... Mas aos poucos fui me conformando: nunca mais ia conseguir mesmo, então... toca a vida pra frente.
Pois agora estou prestes a conseguir, a ressuscitar essa pérola do Aldir que é grande, grande, mesmo que quase ninguém conheça.
E o Taiguara, com sua ternura na voz, encanto nos olhos e firmeza no olhar, volta para mim com todos os tons psicodélicos que fizeram sonhar os meus 15 anos, desenhos em luz negra a girar nas paredes da alma, margaridas pelo ar, batas indianas e cachos nos cabelos.
Taiguara que fez um Brasil difícil tão mais bonito! Amado, censurado, livre-feliz, um jovem com um destino, como tantos... destino de cantar o amor e de levar toda a gente a cantá-lo.
A saudade do Taiguara é um pouco como a saudade de ter esperança, como a gente tinha, num futuro diferente... Onde as crianças pudessem cantar livres sobre os muros e ensinar sonho aos que não soubessem amar sem dor... Com o passado a abrir os presentes pro futuro, que não dormiu... e preparou o amanhecer.

sábado, junho 16, 2007

Ariano


Quando se abriram as cortinas do auditório de O Globo, no último dia 13 de junho, a visão de Ariano Suassuna sentado em sua poltrona, emoldurado por painéis em tons quentes e ilustrados por gravuras suas, deu-me um nó na garganta que logo me assaltou os olhos. A emoção pura de vê-lo ali, tão simples em sua grandeza, foi quase incontrolável. Foi como se visse o Brasil que eu queria.
Porque Ariano é, hoje não tenho dúvidas, o retrato do Brasil que eu queria; firme, resistente, um coração enorme e um espírito que não se dobra quando se trata de defender as suas convicções.
Se o Brasil fosse Ariano, talvez o nosso povo pudesse celebrar a rica simplicidade de suas raízes sem se permitir ser invadido pelos abusos diários, pela corrupção e pela indignidade. Talvez esse povo tivesse menos celulares de cartão, roupas importadas de $ 1,99 (que, em geral, são doações internacionais subtraídas por receptadores), bugigangas tecnológicas da China, mp3 no ouvido. Mas teria mais alegria de viver, mais respeito por si mesmo, mais zelo pela nacionalidade, pelo Brasil que lhe corre nas veias.
Se o Brasil fosse Ariano, a nossa alma estaria preservada, com seu quê de tristeza ou de malícia, contra a tentação renitente de se negar três vezes diante de qualquer cenoura estrangeira que nos balançam à frente.
Teríamos medo de virar depósito do lixo dos ricos e vergonha de consumir produtos descartados da cultura mais imediata e sem rumo, filha unigênita da falta de talento e perspectiva. E teríamos força para defender-nos do mal que se espalha indiscriminadamente pela glamurização do crime, pela injustiça e impunidade.
Ariano resiste. Com sua beleza senhorial, sua firme inteligência, vitalidade e humor sempre pronto a arrastar todo mundo no galope do sonho e no riso a cavalo. Transitando agilmente entre um e outro, fala abertamente de tudo aquilo que a nossa alma aprendeu a esconder! E a gente ri com ele, comunga com ele, galopa com ele, renasce feliz...
Se o Brasil fosse Ariano, a gente teria orgulho daquilo que realmente somos, não daquilo que inventamos ser, de acordo com a ocasião. Teríamos por dentro e por fora aquela vida, aquela fibra, a energia airosa e o olhar firme, a palavra precisa e o gosto fundo da alegria.
Se o Brasil fosse Ariano, esse povo seu filho não seria cúmplice no esfacelamento da sua própria cultura. Colocaria os "outros" no seu devido lugar... guardando dentro de si o que importa, o que é universal, obviamente. Mas aqui, no nosso quintal, ninguém iria mandar e nos dizer o que presta ou o que não presta.
Se o Brasil fosse Ariano, o seu exemplo haveria de bastar para arrancar da terra e dos corações o que temos de melhor. Seríamos mais livres, menos judiados, não aprenderíamos a excluir e sim a abrigar, trataríamos de cuidar do equilíbrio necessário para que todo homem se pudesse olhar como um igual, num espaço comum em que as diferenças não humilhassem e despedaçassem tantos seres humanos.
Teríamos pressa em recuperar a alegria de viver, a felicidade de sermos tantos e tão belos em nossa diversidade.
Se o Brasil fosse Ariano, teríamos cuidado com a nossa infância para dá-la de presente às crianças e, com isso, ser crianças de novo... Crianças grandes com poder de criar uma lei que nos obrigasse a ser felizes, como diria Chico Buarque.
Por isso tudo Ariano fica em mim, mais que celebrado em seus 80 anos, entre a emoção que inunda e o riso que faz rebentar com sua verve única, sábia e colorida. Que o Brasil adora não por causa da Rede Globo, que no momento o centuplica como o produto que não é (ainda que se possa dizer, "bom, pelo menos mostra"...). O Brasil adora porque sabe que é um pouco como ele, que faz parte dele, que no fundo do coração esquecido é capaz de se reconhecer nas histórias que ele conta todo rasgado, desfeito e refeito na beleza da sua alma mais que brasileira.
Pedi um abraço, ganhei, e por um momento pude respirar a vida que emana daquele Brasil-feito-gente. Na saída, a porta do elevador emoldurou a sua imagem serena, autografando, sorrindo, ainda diante de uma fila enorme. E eu pensei, com os botões da minha esperança, que Ariano Suassuna é a prova inconteste de que o Brasil que eu desejo existe mesmo em algum lugar, já está plasmado, só falta mesmo acordar.

quinta-feira, junho 07, 2007

Alabê de Jerusalém (feito gente grande...)


"Ogundana é um nigeriano nascido há dois mil anos, que aos 12 anos sai de Ifé, cidade onde nasceu, em direção ao norte da África e, com 20 anos, chega às margens do Rio Nilo.

Vivia-se a década de 20 da Era Cristã. No império romano, um centurião curado por seus poderes convida Ogundana a ir para Roma. Ao chegar, graças à sua experiência no manuseio de ervas medicinais, é contratado para cuidar de feridos e doentes do exército romano.

Mas logo Pôncio Pilatos, então governador da Judéia, o contrata como terapeuta de sua tropa. Eles seguem então para Cesaréia, cidade em que Ogundana conhece Judith, o grande amor de sua vida. Apaixonado, o casal vai para a Galiléia, onde conhecem Jesus Cristo e o acompanham até a sua crucificação. Passados 20 anos do sacrifício do Mestre, Judith morre e Ogundana vai para o deserto da Galiléia, onde vive até o fim de sua vida. Hoje, Ogundana é uma entidade espiritual chamada Alabê de Jerusalém."
(Aquiles Rique Reis)

Hoje, Alabê de Jerusalém é uma ópera. Completa, com todos os cânones. Pra especialista nenhum botar defeito.
Por obra e graça de uma força da natureza que atende pelo nome de Altay Veloso.
Ópera brasileira, sim senhor.
Haverá puristas para questionar a existência de tal gênero?
Pode ser, mas seria desperdício e bobagem. Temos mais do que direito a figurar no cenário operístico com linguagem própria, tamanha é a riqueza musical que exibimos o tempo todo, aclamada mundo afora.
Alabê de Jerusalém será talvez a primeira, e Altay Veloso teve peito para encarar, assumir, criá-la com toda a sua esfuziante energia, todo o seu talento e amor. Isso mesmo! Altay Veloso exala amor. Tem uns olhos de bondade de derreter o mais empedernido dos homens; tem uma alegria de viver permanente, um quê de quem possui o entendimento do mundo. A simples visão do seu jeito brejeiro comove. E não precisa nem saber quem ele é, ele tá lá aí pra isso, o sorriso e a humanidade são os mesmos, sempre.
E essa humanidade foi, sem dúvida, o combustível que fez-lhe ferver o talento, nos últimos 20 (vinte!) anos, até que concluísse o trabalho da sua vida, a grande obra que perseguiu com doce obstinação, e ofereceu no último dia 30 aos olhos e ouvidos do mundo: Alabê de Jerusalém.
E não podia ser diferente: o Alabê fala de amor, pois veio do próprio amor. E numa língua que todos entendem: a da tolerância, da paz, do perdão, da grandeza, da comunhão, do fim das diferenças, da celebração da vida. Esperança em forma (e que forma!) de arte, arte para todos, para multiplicar os pães em tempos de insanidade, onde mais do que nunca é preciso alimentar as pessoas com o bem maior que nos garante a condição humana - esse mesmo, o amor indiscriminado, total, absoluto, salvador.
Creio que Ogundana em pessoa e toda a sua legião trataram de tudo lá de cima, para que Altay tivesse a seu lado as pessoas certas para tornar possível aquilo que vimos em cena, no Teatro Municipal do Rio, (infelizmente) apenas por uma noite.
Fábio de Mello, um dos artistas contemporâneos mais completos deste país, foi escolhido para embarcar nesse sonho já há alguns anos. Coreógrafo, criador, encenador, iluminador, dono de uma cultura musical e de uma dimensão cênica únicas, Fábio cruzou o portal, acompanhado de sua mâitre de ballet e ensaiadora Bete Spinelli, e dinamitou a ponte atrás de si. Alabê tornar-se-ia algo irreversível em sua vida. E também Marcelo Marques, premiadíssimo figurinista e cenógrafo, com sua sensibilidade à toda prova. E Leonardo Bruno com todo o seu conhecimento e talento. Além de coro, bailarinos, cantores, um elenco de 120 pessoas.
Acordar o Alabê de seu sono de séculos foi um trabalho digno dos épicos de Cecil B. de Mille. Foi preciso determinação, vontade além da vontade, talento disposto a trabalhar quase até à exaustão. O providencial patrocínio da Petrobras, sabidamente o grande mecenas atual da nossa cultura e diversidade, parece deixar perfeitamente claro que, sobretudo para o Brasil e os brasileiros, a cultura é pão indispensável no cardápio de cada dia. E necessária nos quatros cantos dessa terra, nos mais recônditos lugares, e mais desesperadamente ainda onde o dinheiro não pode comprá-la.
A ópera Alabê de Jerusalém é do povo, sim - e não porque seja popular ou popularesca no sentido pejorativo em que muitas vezes tais adjetivos são usados. Muito, aliás, pelo contrário. É do povo porque respeita a sensibilidade das pessoas diante da qualidade musical e cênica. É simples na linguagem sem nunca ser simplória. Flui com facilidade sem jamais ser "fácil", ao contar uma história que todos conhecem sob um prisma novo, o da diversidade religiosa. E estimula as pessoas a buscarem o sonho em cada momento seguinte, como se Cristo chegasse à terra pela primeira vez. É do povo porque prova, acima de tudo, que todos podem falar a língua da verdadeira arte, que é clara, límpida, honesta e brilha com as cores do talento.
Alabê de Jerusalém é uma obra de ruptura. Traz em si o frescor que precisamos para substituir estruturas emboloradas, abrir o espírito para um "novo" que é simples, aberto, direto, cheio de luz. E ao mesmo tempo sutil, enunciado, solto no ambiente para ser percebido por cada um com aquilo que tem dentro... informação, sensibilidade, sentimento ou o simples gostar.
Enquanto espetáculo, Alabê de Jerusalém tem boa dinâmica, ritmo, fluência. E bons cantores nos papéis e canções certos, além de uma concepção estética refinada, de tintas densas, que reveste a história de uma bruma importante para dimensioná-la no tempo sem tempo da própria humanidade. Se por vezes o palco parece um tanto alvoroçado, isso parece refletir a própria indefinição das almas naquele momento da história. É a eterna contradição entre a possibilidade da salvação e a impossibilidade de recebê-la... enfim, a contradição do próprio homem.
Na linha da ruptura está a acentuada presença da dança, que assume um protagonismo poucas vezes visto numa ópera. Em geral, os números de dança nas óperas funcionam como elemento de ritmo, para dar cor e permitir algum descanso aos cantores. No Alabê não; a dança é o elo que desenvolve a história, pontuando com profundidade a música. E o ballet obedece a uma arquitetura sensivelmente concebida por Fábio de Mello para acompanhar o crescendo na intensidade dramática. Algumas cenas, que mais parecem produto da mente de hábeis pintores renascentistas, bem mereciam tomar de assalto a boca de cena, tamanha a sua força.
De lamentar foi a ausência da orquestra, que por razões técnicas (?) não conseguiu acompanhar a magnitude da obra. Teria faltado tempo? Alma? Vontade? A exuberante musicalidade do Alabê merecia mais, merecia a polifonia natural e ao vivo que cabe perfeitamente no cenário escolhido para sua representação. Os talentosos e profissionais intérpretes conformaram-se com o bg, mas... é claro que não é a mesma coisa.
A atuação de Altay Veloso como o próprio Alabê é um susto de felicidade bem no meio do nosso espanto; estamos diante de alguém que vai além de tudo aquilo que se espera dele e dá muito mais, oferece-nos um ator completo abençoado por todos os orixás, com veemência e doçura, técnica e coração, brilho e verdade. O personagem Alabê inunda-nos de uma vontade de ser bons, de seguir com ele, de levantar bandeiras brancas e firmes pela paz que precisamos reinstaurar no nosso mundo... É mais que uma encarnação de personagem e vai além da incorporação de um sonho; é um ato material de talento, justiça, claridade.
A representação dos orixás ao fundo, na estratégica plataforma concebida por Marcelo Marques, é comovente e paira sobre tudo, evocando os protetores que, tenham lá que nomes forem, acompanham não só o Alabê como a própria humanidade durante a saga cristã. Além desses, destaque para os figurinos do próprio Alabê, de Judite e do corpo de baile.
Fábio de Mello criou um poema épico no qual a obra de Altay Veloso não só se encaixa à perfeição, como brilha intensamente.
O público carioca, o público do Brasil - e por que não? - o público do mundo mereciam uma temporada digna dessa obra-prima que veio mudar o conceito da representação da cultura brasileira.
Viva o Alabê de Jerusalém entre nós, e de preferência por mais uma eternidade!

sexta-feira, junho 01, 2007

Ecos de maio


Permaneci em maio com a alma em polvorosa.
Foi mês de arquitetar destinos, de lançar-me ao mar, de nadar contra a corrente.
E de encontrar insuspeitas felicidades.
Os primeiros dias foram de preparar-me para o primeiro Portugal, onde cheguei dia 4 com malas pesadas e alma leve, aberta ao que me quisesse vir.
E encontrei os novos cheiros que vieram preencher os aromas que antes recendiam só na minha imaginação.
De Lisboa ao Porto, ao Douro e de volta, de lugares tão inimagináveis como Pinhão e Casal de Loivos, Santa Maria da Feira, Estarreja, São Jacinto, Torreira, Matosinhos, de Coimbra, só fiz apaixonar-me por cada instante, por cada palavra trocada com amigos antigos e novos, estranhos que não estranhei, amores que o simples amar transformou em amigos de sempre, personagens que viraram gente no coração e no abrir-se para o outro.
Meu maio foi mais português que a própria primavera, essa a espalhar seu calor veranesco pelos caminhos, o ar, as certezas e virtudes, os sonhos feitos reais.
De volta, além dos cds e dos livros, o vivo sentir da memória de tudo.
A cor profunda de tanto bem querer.
Fui cumprir o ideal da terra e voltei de lá mais brasileira, mesmo com pena de voltar.
E cheia de saudades por esse tanto mar.


Convido-vos a andar comigo pelos caminhos de Portugal em
Portugal, Portugal

quarta-feira, abril 25, 2007

Teresa Salgueiro, você e eu

No dia 15 de abril, lá fui eu compenetrada para o Vivo Rio, ver Teresa Salgueiro cantar música brasileira. A encantadora portuguesinha de fala pausada, pele de louça e uma voz de deslumbrar os mais exigentes tinha, quem diria, um sonho de cantar a nossa música. "A vossa música que eu tanto gosto", confessaria mais tarde, cândida, durante o show.
Um amigo dileto, profundamente fã dos Madredeus, desistiu de ir justamente por isso. Comigo foi bem ao contrário; instigou-me a curiosidade em saber como ela iria se sair. Ritmos diferentes, sentimento diferente... todo um universo novo para explorar em suas mais várias texturas musicais.
E devo dizer que a Teresa sempre consegue surpreender. Por mais que estejamos convencidos da beleza do seu timbre, da força da sua interpretação e da sua presença em palco, o que se viu no Vivo Rio naquela noite foi de estarrecer.
A impressionante Teresa e o septeto do maestro João Cristal ousaram de verdade: decidiram contemplar o nosso cancioneiro dos anos 30 até hoje! Enquanto ela explicava isso ao público com deferência, humildade e até carinho, eu tentava atinar como é que iriam fazer isto em pouco menos de duas horas de espetáculo.
Sem o mais leve tom de sotaque, a figura delicada, como que recortada dum fado contra o fundo de luz, revelou o que guarda de brasilidade em sua alma. Foi à Bahia com Ary Barroso, a Maracangalha(!) com Dorival Caymmi, banhou-se em todas as praias do Rio com Tom e Vinícius, atreveu-se a riscar o nome do caderno de Herivelto Martins, sambou com pés de pluma sobre o palco, bossanovizou o violino da voz e fê-lo ecoar brasileiro, sentido, profundo, gemido, escancarado - e de novo suave, cálido, guardado, contido como só ela sabe fazer.
Dentro de Teresa Salgueiro as culturas não só se encontraram; deram-se as mãos, segredaram mágoas, sorrisos e alegrias, fizeram-se irmãs.
E quem naquela platéia não se deliciou, regiamente presenteado com tantas canções queridas em tal embalagem?
E mais: via-se-lhe a felicidade. Seus olhos dançavam na luz, a brilhar, as palavras quase que não lhe cabiam na boca... a humildade sincera que acompanha o talento de Teresa Salgueiro fez do seu show brasileiro - que não por acaso chama-se "Você e eu", a primeira música brasileira que cantou em sua vida - um verdadeiro poema. Ou um beijo, um abraço, um afago enorme na alma do nosso país, de nossa gente.
Mais que pela beleza e oportunidade das canções, mais do que pelo luxuoso talento da intérprete e da competência do maestro João Cristal e seu septeto, mais que pela proposta em si, o lado brasileiro revelado de Teresa Salgueiro deixa claro que, quando o amor entra em cena, não há barreira cultural que não possa ser transposta.
Cantemos, pois, um belo fado em louvor de Teresa Salgueiro e sua arte - de preferência, com o acompanhamento de uma bateria completa de escola-de-samba! Ave, ave Teresa!

domingo, fevereiro 25, 2007

Do Cacique do Rochedo às folhas secas caídas de Mangueira

Em Conservatória...

Carnaval em Conservatória é algo que caiu no gosto do meu coração, desde o ano passado. Aqueles cinco dias no Hotel Rochedo, regados a marchinhas de sempre, blocos de rua e tranqüilidade, fizeram-me repetir a dose em 2007. Afinal, não é todo dia que se pode brincar como antigamente até se acabar pelas ruas, sem precisar ficar com um olho no samba e outro na violência.
Ah, mas não é só isso: tem a segunda-feira, esperada como quê, quando a gente desfila, com toda garra, pra defender a bandeira do Grêmio Recreativo Escola de Samba Cacique do Rochedo. Desfile sim, tá pensando o quê, com comissão de frente, carro abre-alas, alegorias e belas fantasias. No ano passado, o enredo foi a Bahia; este ano, foi a vez dos astros e da astrologia.
Tem também o Bloco do Bacalhau, o do Arrasta, a Masmorra com seus jovens e indômitos integrantes, o Chorinho, o Unidos do Benfica... Carnaval em Conservatória é uma festa. Festa familiar, onde todos os amigos se encontram na cidade que, por uns poucos dias, faz a seresta dormir e marca um encontro folião com os antigos carnavais. Que de antigos só têm mesmo a boa música, porque a energia, ah, essa é novinha em folha e parece não acabar nunca. São incontáveis os personagens que saem em todos os blocos, na avenida de pedra lascada construída por escravos, ela em si um desafio feroz à resistência dos pés. Mas o povo não parece se importar: a alegria é genuína, leve e simples. E contagia a gente.
Na quarta-feira, um bem-humorado Bloco do Caixão percorre as ruas contando a história do morto, esse ano apelidado de René Senna, que saiu na sexta-feira pra comprar cigarros e voltou num estado lastimável: restaram-lhe apenas o esqueleto e, claro, a danada da cachaça...
Se Conservatória está na história da seresta brasileira, com certeza está também na história de um carnaval muito vivo, que não se contaminou de funk, axés ou outros modismos duvidosos. Ainda é o bom e velho carnaval das marchinhas e dos sambas-canção, que certamente faria o querido Braguinha e muitos outros compositores sorrirem de gosto lá do céu.

... e na Sapucaí

As folhas secas caídas de Mangueira, que tão bem marcaram a homenagem da verde-rosa à língua portuguesa com palavras do mestre Nelson Cavaquinho, foram pisoteadas esse ano pela deselegância.
Das fantasias? Decerto que não. Dos integrantes? Muito menos. Faltou samba no pé? Nunca, em tempo algum. Faltou, mesmo, foi amor - aquele amor de verdade que nós, ferrenhos mangueirenses, sempre acreditamos existir no coração da mais-querida por todos aqueles que a fizeram grande e eterna.
Esse ano a Mangueira ficou devendo à Sapucaí a presença de dois entre os maiores: Beth Carvalho e Nelson Sargento. E por que? Por pura deselegância, pinimba, bobagem. A direção negou à divina Beth um pedido simples: sair num carro, porque sua coluna não agüentava mais o esforço no chão. E se "esqueceu", imagina, de confeccionar a fantasia da mulher de Nelson Sargento, talvez o mais importante entre os compositores vivos da escola.
Foi com tristeza que vi Beth Carvalho, com seus olhos sempre esperançosos e pronta para o desfile qual Cinderela para o baile, aguardar na avenida pela promessa de um carro, feita pelo presidente da Mangueira, um tal Sr. Percival Pires, conhecido como Perci. Mais triste ainda foi saber que, ao se dirigir ao carro dos baluartes, onde lhe informaram que iria sair, Beth foi expulsa com ignorância por um senhor que nem mesmo ela, que respira Mangueira há 36 anos, sabia quem era.
E o que dizer de Nelson Sargento? O presidente da Mangueira alegou que a fantasia de sua senhora estava pronta, "ele que não foi buscar." Nelson, do alto de sua humildade e elegância, informou que, no barracão lhe disseram apenas que "não tinha nenhuma fantasia em nome de Dona Fulana".
Não saiu o grande Sargento com sua companheira, não saiu Beth Carvalho com todo seu amor e empenho pela verde-rosa. E a gente, em casa, ainda tem de ouvir palavras deselegantes como as do soberbo Max Lopes, grande carnavalesco, menosprezando Beth Carvalho: "A Mangueira é uma escola muito grande, ela não combinou nada..."
Quem conhece minimamente a história de Beth Carvalho sabe do seu caráter, da sua coerência e de sua dedicação à escola e ao samba de modo geral. Daqui a uns poucos anos pouca gente se lembrará de um tal Sr. Percival Pires, ah, sim, aquele que foi presidente da Mangueira. Menos tempo levará para que se esqueçam do tal senhor que expulsou a cantora, aos gritos, do carro dos baluartes. Max Lopes com certeza figurará por muitos anos entre os grandes da história do carnaval da Sapucaí.
Mas e Beth Carvalho? Como será lembrada?
Será lembrada sempre por sua linda voz, seu talento, seu encanto, pelos grandes sucessos, por sua empatia absoluta com o povo, que se rasga por ela em todas as ocasiões. Num show em Volta Redonda, há uns quatro anos, com ingressos distribuídos gratuitamente, houve câmbio negro e polícia na porta. A voz de Beth Carvalho entoará "Coisinha do pai" por toda a eternidade em Marte. Podiam ter escolhido qualquer artista, mas escolheram Beth. Na Mangueira, falou verde-rosa, falou Cartola, Dona Zica, Dona Neuma... e Beth Carvalho. Alcione também, Rosemary também, claro, assim como todos os grandes compositores que fizeram e fazem sua história. Mas Beth Carvalho continua a ser um dos mais expressivos sinônimos de Mangueira, haja o que houver e doa a quem doer.
Como é que, então, um simples burocrata tem o poder de humilhar e desprezar uma artista como Beth Carvalho, um ícone como Nelson Sargento? Que me perdoe o Sr. Percival Pires, seja lá quem for, mas as folhas secas caem e novas nascem. A Mangueira, Beth e Nelson não passarão, com toda certeza. Assim como vai demorar a passar a triste impressão que deixou no público, em especial nos mangueirenses, esse lamentável episódio.
Não se pode pensar em Mangueira sem reverenciar a sua história e, sobretudo, os seus grandes personagens. Beth, com seu sorriso, deu-nos uma grande lição no Desfile das Campeãs, ao tremular a bandeira verde-rosa e cantar o samba da arquibancada. Por que ela, ao contrário de muita gente, sabe exatamente qual é o seu lugar no coração da Mangueira e do Brasil.

Ceará em generosas doses

Depois de uns ventos algo contrários em setembro/outubro, revisitei o Ceará nesse recente e ensolarado fevereiro.
E com que felicidade!
Algo me dizia que eu tinha de voltar logo a Fortaleza para enxergá-la direito, recompor sua poesia no meu imaginário um tanto manchado de incertezas. Percorrer as ruas de mãos dadas com o sol da manhã, a brisa da tarde, o burburinho da Beira-Mar, o cheiro de castanha torrada na hora. Almoçar fartamente acalentando o mar, abraçada pelos ventos benfazejos a desmanchar os cabelos dos coqueiros. Jantar em torno do Dragão do Mar, observar as pessoas, aprender a complexa ciência de comer caranguejo toc-toc...
E foi exatamente isso que fiz. Em boa hora e com bons fluidos por toda parte. Partimos eu, filha e sobrinha para a terra de Iracema sem atrasos nos vôos, hotel impecável, passeios reveladores a Cumbuco, Morro Branco e a incrível Serra de Baturité, com seus mosteiros, hortênsias e aves tropicais.
Boates também, como não, afinal quem tem pelo menos um adolescente na família não sabe o que está perdendo: a irrepreensível Mucuripe com seus vários espaços e tendências, a estilosa e estranha Órbita (ou "Orta", para um dos simpáticos taxistas) e ainda o impraticável Armazém, superlotado e mal freqüentado, que nos deu a exata sensação de que não devíamos mesmo ter entrado ali.
Mas foi em Jericoacoara que percebi, de fato, a razão da viagem.
E o Brasil que tinha dentro de mim mudou para sempre.
Nesse lugar que a imensidão escolheu para morar, dourar-se ao sol, enterrar-se na areia sempre mutante das dunas e banhar-se demoradamente no mais azul dos mares ou nas lagoas mais recônditas, nesse lugar onde Deus inventou a felicidade, foi que me encontrei comigo inteira, avesso, direito, bordas, bolsos escondidos, fundos falsos, armadilhas destravadas. Só em Jeri é possível despir os medos, lavá-los e secá-los ao vento e ao sol, estendê-los na longa faixa de areia até que, bem esticadinhos, revelem-se sem armas.
Na luz da areia branca e das águas transparentes, compreendi meus últimos meses, teci um novo sentir, livrei-me das tralhas usadas e acumuladas na alma, esvaziei-me de prejulgamentos, mágoas, tristezas e restos. Renovei o estoque de esperança, abri as comportas, deixei dores, encontrei sorrisos, soltei o corpo com leveza e, pela primeira vez em muito tempo, dormi, indefesa e feliz, o sono da serenidade.
Em Tatajuba contemplei a humana pequenez diante do imenso ao meu redor, saboreei peixe e camarão como se estivesse na Santa Ceia, sentei-me numa providencial rede a balançar na água, senti os pés na areia molhada. Na Pedra Furada quebrei um dedinho, sim, mas o que é um dedinho diante de Jericoacoara e sua grandeza? Subi a duna mas o pôr-do-sol não apareceu, coitado, após brigar com a nebulosidade; ao descer, parei embevecida numa roda de capoeira cercada de turistas desconcertados, a filmar e fotografar freneticamente. Vai pôr na cabeça de um romeno, eslavo, finlandês, sei lá o que mais, a essência de um ser capoeirista??...
E no embalo do berimbau fui guardando com carinho as lembranças mais doces para usar depois - agora, por exemplo, quando apesar da distância física a imensidão se instala e Jericoacoara cura-me pra sempre de tudo o que der e vier.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Filmes, filmes para uma cidade

É fácil dizer que Tiradentes, em Minas Gerais, é tão bonita que daria um filme. A exuberância e o calor desse cenário a céu aberto, talhado na pedra lascada que sobe ladeiras atrás de ladeiras, emoldurado pelo conjunto colonial recortado em branco e tons naturais contra uma imponente e protetora Serra de São José, são de fato para sonhar e eternizar.
Mas Tiradentes não é cidade de um filme só. Mesmo não tendo um cinema sequer. Quando chega janeiro - e isso já há dez anos - todos os filmes são para ela, rainha escolhida a dedo para sediar a Mostra de Cinema de Tiradentes, uma espécie de paraíso democrático do filme nacional, seja ele longa, curta ou vídeoarte, e do livre debate sobre tudo aqulo que realmente interessa, quando o assunto é cinema.
São dez dias descompassados, quando o coração escorrega mil vezes pelas ladeiras, entre o Centro Cultural Yves Alves, onde se acende o debate, o Cine-Tenda - um enorme e irresistível escurinho que remete aos cinemões que alimentavam a infância da gente, e onde se exibe a maior parte dos filmes - e o Cine-Praça, que faz a alegria do povo sempre que as chuvas o permitem. Isso sem falar nas inúmeras oficinas que se multiplicam atrás de portas fechadas, inconfidentes, delirantes - e muito, muito profissionais.
Livre e colorida, descompromissada com sucessos pontuais e entregue à sua vastidão e diversidade, a Mostra é uma festa. E para combinar com a mineirice do cenário, sempre começa e termina com um cortejo - nada menos que o célebre bloco, para quem é de carnaval - cheio de paixão, fantasias, bandinha, malabaristas, perna-de-pau, bonecos cheirando a Olinda e muita, muita batucada para fazer tremerem as pedras da história.
No recheio, a qualidade absoluta da programação, o compromisso em democratizar a produção do ano - todos podem ter tudo de graça - e a profundidade com que se discute cinema o tempo inteiro, num ambiente de grande transparência. Onde a estrela verdadeira, aquela que brilha todas as noites sobre as nossas cabeças, faça chuva ou céu estrelado, é o vigor com que o cinema brasileiro se impõe, cada vez mais, pela qualidade das produções e pelo talento energético de seus realizadores.

Esparsas

Uma vida e seus ecos

Uns dias depois do meu último post, estava a navegar por razões literárias por respostas, comentários e notas de pessoas que ainda não conhecia. Caminhei em meio a essas impressões porque me interessavam vivamente, e assim fui desvendando vidas devagar... Soube de tantos detalhes que não imaginava, aprendi imenso sobre sentimentos profundos que poderiam ser meus, ou com os quais me identifiquei no trajeto... Sem querer, conheci dores, momentos de luto, tristezas debulhadas com carinho e saudade. E por essa razão acabei entrando, respeitosamente, no blog de alguém que tinha acabado de falecer.
Havia ali muita vida, sonhos ainda quentes, esperanças escapadas de sorrisos talvez amarelos, mas guerreiros. E determinação também, bom-humor, talento. Visitei alguém que podia ter conhecido, de quem poderia ter gostado, com quem decerto teria trocado muito... Por instantes, ao percorrer as últimas páginas ali deixadas com a naturalidade de quem tem a certeza de que vai continuar amanhã, pressenti que sua autora era uma dessas pessoas acostumadas à eternidade. Parecia esbanjar vitalidade em cada palavra, com aquele jeito simples e especial que caracteriza as pessoas realmente espontâneas. E me senti bem-vinda, acolhida, como se merecesse de fato entrar, ainda que de leve, naquele mundo. O mundo de alguém que passou, mas mesmo assim permaneceu, espalhando luz à sua volta.
Agradeço aqui ao Milton e ao Paulo, mesmo sem os conhecer, por me terem guiado ao delicado universo de sua querida Meg, autora do blog Sub-Rosa, a quem presto minha homenagem.

domingo, janeiro 14, 2007

Milton, Chico e Ney

A vida volta, às vezes.
E volta cheia de gás, sem nostalgia, com gosto de agora.
Nesses tempos recentes, muita coisa guardada vem se reinstalando em mim de um jeito bom, cheiroso, de memória que refresca a pele.
A música, principalmente... mas a música da vida, aquela que jamais se separa de todo da gente.
Dezembro e janeiro me trouxeram, de uma só enfiada, Milton Nascimento, Chico Buarque e Ney Matogrosso. Ao vivo e a cores, para acender muita coisa costurada à bainha da minha alma desde muito sempre.

Primeiro foi Milton, com seu vigor contagiante, o timbre impossivelmente belo, todas aquelas canções claras feito água de rio, rio vereda de Minas, a Minas que morou dentro de toda uma geração, aliás várias gerações, por obra e graça do menino de Três Pontas e todo o seu clube da esquina.
Ouvir e ver o Milton, só e acompanhado, é um pouco como a letra de uma das canções do último disco: "Será que isto quer dizer amor, estrada de fazer o sonho acontecer?"
Felicidade suprema foi receber, de presente, A lua girou - e o convite para fazer corinho, toda uma platéia respeitosa e apaixonada a cantar, muito afinada, "Hãã... hãã... hãããera... hãã... hãã... hãããera", um colchão sonoro para as sublimes improvisações que só Milton Nascimento sabe fazer, com sua voz de cristal de rocha, da melhor pedra que há nas nascentes das Gerais.

O segundo foi Chico, nosso irmão, nosso filho, nosso pai, amante e amado. Chico dos olhos inocentes e de todos os pecados e sonhos marcados na pele feito tatuagens, só pra nos dar coragem pra seguir viagem quando a noite parece não acabar... Chico, ombro a ombro nos anos de medo, desespero e amor... Chico feminino plural... Chico, encanto que de repente acorda e ressurge no palco, sempre mais belo e do mesmo jeitinho de menino que arriscou ver a banda passar e levou o Brasil com ele.
O homem, poeta e fotógrafo do seu tempo vem novo de coração e de canções, sem faltarem aquelas que a gente jamais esquece e sempre há de reconhecer, afinal, quem canta comigo canta o meu refrão...
Entre as novas, as médias e as antigas, Chico e seu violão nos devolveram a certeza de que, afinal, demos pra alguma coisa, escrevemos com ele parte da história, só por ouvi-lo e ecoá-lo por toda parte, amanhã há de ser outro dia, meu Deus, vem olhar, vem ver de perto essa cidade a cantar...
Quem te viu e ouviu um dia amou-te à primeira estrofe, atravessou o bosque que um muro alto proibia e seguiu contigo; quem te vê e te ouve agora recolhe na alma a poesia que deixas no chão, olha bem fundo nos olhos verdes das canções e, rendido, abre os braços pra você.

E o que dizer do terceiro? Ney Matogrosso, cálido e forte, é um vento de tempestade e, ao mesmo tempo, um acorde singelo a ecoar na noite. Quase acústico, escolheu cantar acompanhado por violões, guitarra, viola, violão de sete cordas, alaúde. E foi replantando, podando e enxertando as canções mais contundentes e também as delicadas, até produzir emoção pura. O Ney que está no palco cercado de cordas é um mestre das artesanias vocais e expressivas. Estão lá os mesmos olhos penetrantes que mesmerizam, cortam, ferem e amam. Estão lá o bom-humor, a pitada de malícia, a brejeirice - e também dor, sentimento, indignação. Ney é um ator a serviço das canções, um artífice da mais pura simplicidade no ato de cantar.
Nesse quase concerto, a surpresa é a pequena mas precisa seleção do repertório dos Secos & Molhados, ao final: Sangue Latino, Rosa de Hiroxima, Fala. E Ney fala, sim, com a voz e autoridade de quem fugiu de limites sem jamais ultrapassar os meridianos do bom-gosto. Fala com o corpo, os sentidos, melodia e palavras. E faz voltar e seguir o tempo, ora sambista, ora bandoleiro, ora amendoim torradinho... mas sempre, sempre Ney. Como só ele sabe ser, sentir e se fazer sentir.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Independentes

I
Selvagens o tempo
e os arrepios de medo
- hora de guardar-se.

II
Jogar, ora bolas
pernas compridas e poucas
pra tanta sede de gols...

III
Faceiríssima, nua,
o amar armado no espelho
- e a alma, encolhida.

IV
Esse funk pra todo lado
e o coração, surdo-mudo,
põe o leite pra esquentar.

V
Portugal cá dentro
canção pra lá dos olhos
E onde estás, tu, mamá?*


........................................................................................

* (Estrofe da Canção de Lisboa, de Jorge Palma,
mestre da música e da alma portuguesas)

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Saudade boa, ou "tudo fácil, nada perto"

Neste momento, 01:48 da manhã, ouço extasiada o terceiro ato da ópera I Puritani, de Vincenzo Bellini, transmitida ao vivo do Metropolitan Opera, em Nova York. Solistas, a revelação Anna Netrebko, o tenor Eric Cutler e o barítono Franco Vassallo. Um amigo me avisou a tempo de poder ouvir quase a ópera inteira, um raro prazer em linha direta.

Enquanto ouço, penso na maravilha que é a instantaneidade da tecnologia. Num instante deixo minha cadeira de trabalho e estou na platéia do Met, com toda a energia e carga emocional que uma ópera como esta traz consigo e distribui, generosamente, aos aficionados.

Tecnologia... Pode ser acolhedor ver chegar um email quentinho, saído do forno da alma, com carinhos vivos de alguém - boas palavras, amenidades, poemas, doçuras. É bom clicar ou receber um clic no msn, falar com alguém léguas e mares distante. É bom ter o Skype e conversar como se fosse de bem perto. A tecnologia é capaz de, a todo momento, fazer suas mágicas, colorir o dia, abraçar a alma.

Penso em como tudo isso é fácil... o difícil, mesmo, é o ser humano.

Aqui sentada a escrever meu blog, sinto falta de ti e tuas graças. Do modo como chegaste sem jeito, do nada, e abriste caminho para alegrar-me. E de como nos entendemos com verdade e poesia, com uma naturalidade mansa, mas absoluta.

A tecnologia abrigou um texto meu, escrito com a máxima paixão, e levou-te a ele. E assim vieste, sem mais cerimônia, a sorrir timidamente no email. Minha alma distraída, leve-solta no ciberespaço, recebeu-te com alegria leve, fraterna.

Sabias falar comigo, fazer-me rir, poetar, sonhar. Parecias sempre chegar para o chá com biscoitos finos, um pouco de geléia a lambuzar poemas, sorrisos, palavras vivas, histórias contadas com brilho nos olhos que eu ainda não via. Convidavas-me a passear pelo teu dia-a-dia, eu ia de carruagem, às vezes com asas emprestadas. E divertia-me sempre.

Fomos criando costume, cumplicidades... e ficando necessários um ao outro. Eu te esperava, e tu a mim, para trocar poetas e suas estrofes, construir lembranças, inventar verdades. O oceano e o fuso horário que nos separavam tornaram-se irrelevantes para tanto assunto, tanto gozo de estar juntos.

Os sonhos, bem alimentados, engordavam a olhos vistos (ou quase). Um dia disseste que ias atravessar o mar... e então pusemo-nos a desejar o encontro dos olhos e das mãos e das pequenas felicidades. Esforçamo-nos para isto online e offline: email, msn, telefonemas do ultramar... tudo contribuiu para que afinal, pudéssemos estar juntos.

Mesmo no continente, ainda faltavam uns três mil quilômetros. Preparei-me para ti desde muito longe e bem dentro, e tu para mim. E conseguimos, sim, conseguimos... tudo parecia conspirar para que a alegria ao vivo fosse a mesma das cartas, juras e sonhos anunciados.

Gostamo-nos. Amamo-nos. Houve verdade e ardor, pânico e dúvidas. Recuos, ansiedades, desconforto misturado ao carinho e à leveza de ser juntos, simplesmente, diante do mar e de nós mesmos.

Voltamos à distância física, mas lá estava o email a amenizar tudo, a rechear incertezas com poemas e beijos. E, mesmo com o passo inseguro, permanecíamos cúmplices em muitas coisas. Era um prazer duelar sobre bobagens da gramática, trocar apelidos, falar de tudo aquilo que gostávamos.

No seio de algum desvario, arrefeceste. Divergimos, amuei-me, foram menos emails, tu com mais compromissos, a interessar-se por coisas que eu não via, mas estranhamente pressentia. Nossa fina sintonia apontava interferências, e nem a eficiência das redes sem fio conseguia saná-las.

Até que pousaste em outras asas, para desgosto das minhas, que se equipavam para voar rumo ao que ficou do encontro, curar saudades, rechear ternuras. E olha que se não fosse a tecnologia eu nem ficava sabendo...

E vieram as dores normais, bem humanas, de uma despedida conturbada demais e mesmo imerecida, diante do belo que por tanto tempo soubemos cultivar. Vieram a raiva e as palavras não medidas, os machucados na alma. A tecnologia entrou para dar mais intensidade à dor e deletar o registro amoroso, datado e preciso, cuidadosamente organizado para perdurar.

Mas não quiseste ir de todo, apesar da primeira maré de fúria. No msn teimavas em ficar, eu me horrorizava, resisti, excluí, bloqueei - e tu a insistir, a pedir passagem para talvez uma palavra que ficou sem ser dita, um detalhe importante que escapou... Ao terceiro dia, capitulei e deixei-te entrar, não sem medo ou até uma certa mágoa. Que o tempo, mesmo ainda curto, encarregou-se de lavar.

Agora, às vezes, nossos nomes se encontram. No início até se estranhavam, entravas, saías, sumias, voltavas, tudo em questão de segundos. E eu pensava em como era bom quando conversávamos, felizes por estar um com o outro, ainda que apenas por um texto digitado, um poema captado, um beijo no ar. Espero que fales, não falas. Revelamos nossas músicas, arrisco um poema. Vira e mexe, voltas. Vejo-te, tu me vês. Nada ou tudo se diz em silêncio. E voltas a sair, eu também saio.

Na saudade de conversar, não é o amor que volta. Fica o carinho a bailar, o toque de sensibilidade que nos uniu nos livros, nas canções que nos vieram ao encontro na estrada, nos poetas que emprestamos um ao outro, nos marcadores deixados na alma.

Quando vejo teu nome, nossas palavras fazem barulho dentro de mim, como a querer soltar-se e cirandar de novo ao vento, a pular, desabridas e de mãos dadas, as janelas que acabamos por deixar entreabertas...

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Nas pétalas de um poema roubado, devolvido e compartilhado

Gosto de Cora Rónai.

Não me peçam explicações: gosto, pronto.

Não é só porque sempre admirei seu pai, Paulo Rónai, respeitadíssimo tradutor e pessoa das mais queridas no meio intelectual de sua geração.
Nem apenas porque Drummond sempre me falava bem dela, "eu vi essa menina crescer, ela é muito inteligente...".
E nem só pelas belezas que escreve.

O meu gostar tem um pouco de tudo isso e também alguns dos ingredientes que deixa escapar pelas vírgulas, reticências, exclamações: temperos simples do coração, receitas de família, guardados de gaveta recendendo a perfume com naftalina, sabores de infância... são muitas coisas. Assim que a encontro sempre com muito prazer na coluna do jornal e no blog também.

Mas essa semana Cora foi demasiado fundo, e com tanta transparência e leveza que quase não percebia chegarem-me as lágrimas com tanta força, ao vê-la contar (sim, vê-la, porque Cora se vê no papel) a história do poema roubado à chácara da sua infância.

Ocorre que Paulo Rónai e sua mulher resolveram decorar jardins, quintais, pomares e tudo que de verde havia com, imaginem, poesia pintada em doces tabuletas! Paulo escolhia, Nora pintava, e as tabuletas-poema proliferavam no caminho do verde, a iluminar o espaço da natureza. Tesouros que, como nos conta Cora, o tempo e os humores da floresta encarregaram-se de dissolver.

Mas um deles voltou, e com as próprias pernas que o levaram, mais de 20 anos atrás.

A deliciosa crônica de Cora Rónai revela os detalhes desse insólito retorno com as melhores tonalidades da alma. A bem do melhor entendimento, peço-lhe vênia para resumir: um menino que por ali andava achou "tão bonita" a tabuleta com um poema de Cecília Meirelles, dedicado aos donos da casa, que a levou consigo... e guardou-a muito bem, creio que com respeito e carinho até, pois permaneceu intacta. Para devolver, envolveu-a num saco de lixo preto e anexou um tímido e maltraçado bilhete, no qual revela que, já homem, converteu-se a Jesus e achou mais certo devolver.

A foto que ilustra a crônica mostra a tabuleta restituída soberbamente à paisagem, decorando uma casinha de pássaros ou pombos, talvez. Veio-me forte a emoção ao percorrer a pintura do poema, feita pela mãe de Cora com a delicadeza própria do amor, com reverência e provavelmente um enorme carinho pelo inestimável presente da comadre Cecília (sim, Cora revela também ser sua afilhada). Delicadas folhas de hera formam uma guirlanda a circundar uma parede imaginária que antecipa os sinais do tempo no reboco descascado, um ar de permanência, perenidade...

Um poema assim só podia mesmo voltar para casa. Cora diz que teve vontade de abraçar o homem que o devolveu, e fala da esperança que há num mundo em que meninos roubam poemas e homens honestos os devolvem.

Penso que tem mais razão do que imagina. A esperança foi plantada quando alguém percebeu que as vozes da natureza recitariam poemas, se estes estivessem bem à mão para serem recebidos na alma. Foi multiplicada entre as crianças que cresceram na convivência natural com aquelas tabuletas sussurrantes. O vento por certo acompanhava, no contrabaixo do seu ir-e-vir, as vozes das dríades que entoavam Bandeira, Cecília, Drummond e quem mais ali estivesse. Se a chuva levou alguns, é porque foram enfeitar outro lugar... como esse da Cecília, que acabou por parar nas mãos ávidas de beleza de um menino que, afinal, deu pra alguma coisa, aprendeu sem saber com as rimas, até entender um dia que não devia ficar com algo que não lhe pertencia. Contudo, se o poema o chamou um dia, é porque talvez, de algum modo, lhe pertencesse sim... é o quinhão de esperança que lhe marcou por dentro, que lhe foi doado por obra e graça do amor que nasceu do que foi ali plantado.

E que bateu em mim. Porque eu senti, Cora, o cheiro do verde das folhas a emoldurar as palavras. Arderam-me os olhos, a alma alvoroçou-se, e eu fiquei feliz por viver num tempo em que tais histórias acontecem aos seres humanos de delicado coração.