segunda-feira, junho 25, 2007

Um só sangue, três brasileiros


Sou chorona, é fato sabido. Mas há tempos não chorava como devia, como eu mesma me devia. Sem afogar os anos e o coração de estudante que deixei pousado na década de 80, bem à beira do poço das esperanças de um país melhor.
Há tempos não chorava como ao ver "Três irmãos de sangue", o poema amoroso em forma de documentário sobre Henfil, Betinho e Chico Mário. Dirigido por Angela Patrícia Reiniger, uma jovem que, de tão jovem, decerto não viveu as vidas e histórias que tão bem soube contar.
Angela soube descortinar a vida brasileira e suas lutas, dores e pequenas vitórias, através da história dos três irmãos que deram tudo ao seu país, cada um na sua frente de batalha, sem entrega, sem trégua.
Foi como se o filme da nossa vida passasse na nossa frente... Só que não era sonho ou experiência de quase-morte, era um filme mesmo, a nossa vida ali rasgada, aberta, descosturada, sofrida - exposta sem qualquer anestesia, mas com beleza, compaixão, perspectiva histórica.
Penetrar na intimidade da família de oito irmãos e todos os homens hemofílicos, ver as irmãs lá, tão corajosas, contando as histórias de cada menino, dos pais, da vida deles, foi como tomar café na cozinha da casa. E sacudir a cabeça como quem entende, como quem viveu tudo aquilo como os três fossem um pouco da gente.
E são. Passei anos nas asas da Graúna e nos braços do Bode Orelana, do Severino e do Fradim. Lê-los era o ritual sagrado que exorcizava um pouco os fantasmas que nos perseguiam naqueles tempos. Em 1986, quando fui selecionada para o primeiro Curso de Jornalismo que a Rede Globo promoveu, o Henfil foi um dos palestrantes. Nesse primeiro contato enxerguei um brasileiro antenado com seu tempo, comprometido com os ideais de justiça e liberdade. O filme falou abertamente do seu desencanto com o aborto das diretas e a eleição de Tancredo Neves, e disso me lembrei bem: em sua fala no curso, ele considerava Tancredo um traidor dos ideais democráticos e da pátria brasileira, que manipulara o processo desencadeado pela campanha Diretas Já! em benefício próprio.
Os detalhes da vida do Henfil, contados pelas ex-mulheres, a viúva, as irmãs e amigos com uma serenidade incrível, tocaram fundo. Assim como o depoimento da mulher de Chico Mário e do filho. E também da ex-mulher e da viúva de Betinho, e dos filhos Daniel e Henrique. Por falar em filhos, Angela Patrícia construiu uma linda cena com imagens antigas do filho do Chico, ainda pequeno, e sua voz gravada sobreposta a outras imagens, mais tristes, do então adolescente no enterro do pai. Pouco antes há um depoimento do menino, muito forte, determinado e cheio de esperanças, na época da descoberta da doença do Chico Mário. O contraponto lembrou as cenas finais do filme Filadélfia, que desfilam imagens enevoadas do protagonista ainda menino, andando de velocípede despreocupado... Isso é cinema, é saber apropriar-se com respeito de detalhes que enriquecem, comovem e ficam pra sempre na nossa memória afetiva.
Tudo... as cartas da mãe, a emoção do Ivan Lins ao falar do Chico Mário, a presença forte do Ziraldo, do Aldir Blanc, do João Bosco e de tantos amigos, famosos ou não, que trouxeram para o filme uma verdadeira profissão de fé na nossa história, um orgulho de terem compartilhado a vida e a militância com três brasileiros tão profundamente éticos, talentosos e humanos.
Rever a chegada dos exilados ao som do hino "O Bêbado e a Equilibrista" foi voltar no tempo e, por um fugaz momento, acreditar de novo que ia dar certo, ia sim dar certo, teríamos um futuro após 21 anos de opressão, sem saber que, outros 20 e tantos anos depois, ainda estaríamos à procura desse futuro em meio à banalização dos valores, reféns do tráfico e da corrupção e sem coragem mesmo de empunhar novas bandeiras, com a casa inteira por arrumar e sem saber por onde recomeçar.
Vi Betinho uma só vez. Ia de carro do Rio para Barra Mansa e paramos no Bob's do Belvedere Viúva Graça, como era costume. E aí vi Betinho em sua simplicidade, parado na calçada a poucos passos de mim, o filho menor por perto. Lembro que pensei comigo: puxa, é a primeira vez que me vejo diante de um herói de verdade. Um herói do nosso povo, em carne e osso e com seus olhos fundos de verdade e jeito de mar. Jeito de gente. E não tive gesto nem jeito de me aproximar. Um herói é um herói... resolvi guardar-lhe a imagem do lado esquerdo do peito. E só.
Não me contive. Ao final da sessão, estendi os braços para Angela Patrícia, essa menina de valor, talento e consciência. Foi um abraço feito de saudades do que vivemos e que ela, mesmo não vivendo, nos devolveu da melhor maneira.
"Três irmãos de sangue" tinha de ser exibido em todas as escolas do país, para que cada criança soubesse que ainda há coisas em que vale a pena acreditar, e pelas quais vale a pena lutar.

sexta-feira, junho 22, 2007

Transfor-Tango


Gotan quer dizer "tango". A inversão silábica parece ser uma moda recente na Argentina. E se repetirmos sem parar - go-tan-go-tan-go-tan-go-tan - acaba sendo mesmo tango. Pelo menos é a isto que o Gotan Project, grupo que mistura elementos tradicionais e eletrônicos, projeções mirabolantes e um jogo de cena muito bem estruturado - se propõe: divulgar o tango argentino, sob o comando de um D.J. com sotaque francês.
Num Canecão lotado como eu não via desde a década de 80 pelo menos, o grupo desfilou seus apoteóticos números musicais com muito ritmo e vivacidade. Um cello, três violinos, piano, violão, voz, bandoneón (claro, não podia faltar), além de um D.J. e um programador/tecladista por trás de uma plataforma alta. Projeções enormes ao fundo, por cima dos músicos, pra todo lado: rostos duplicados, casal dançarino duplicado, paisagens, situações... um mosaico em alta velocidade que por vezes chegava a dar tonteiras.
Senti calafrios. E sono, muito sono, após os dois primeiros números. Aquela insuportável batida eletrônica, bat-bum, bat-bum, a rodear cada acorde, cada instante em que o tango parecia real, o jogo de luzes e configurações calculado com precisão absoluta, com o dom de iludir. E as pessoas, extasiadas.
Lembro-me de ter ouvido Piazolla dizer, num dos espetáculos que tive o privilégio de assistir: - Este é o novo tango, que revolucionou a nossa música. E pelo qual muita gente me critica, mas que é a coisa mais moderna que existe hoje no gênero.
Piazolla mudou o tango, sim, mas mudou com gênio, intensidade, poesia. E não deixou pedra sobre pedra, e no entanto a essência permaneceu e firmou-se definitivamente como o retrato mais fiel da alma argentina.
Enquanto ouvia entre bocejos o Gotan Project, pensava que, para mudar o tango, precisa ser um Piazolla.
Os bons músicos que compõem o grupo estão muito longe disso. À exceção do pianista, este sim um virtuoso quase que completamente obscurecido pela parafernália eletrônica, os outros faziam bem o seu trabalho, mas não despertavam nada de extraordinário, nenhum rasgo no coração sequer parecido com o estrago que faz um único acorde de "Adiós Noniño"...
O Gotan Project é um projeto comercial bem-sucedido, a julgar pela quantidade de gente que apinhava o Canecão e por sua recente turnê européia, orgulhosamente anunciada pelo D.J. francês, fundador do grupo. É um produto típico do falso entendimento de que, para apresentar um ritmo original, nativo e forte, é preciso pasteurizá-lo ao gosto americanizado e vendê-lo como se fosse de verdade.
Em alguns - raros - momentos, quando desligavam o baticum, subtraíam o excesso, abandonavam as projeções e ficavam só no piano, bandoneón, voz e violão, aí sim a minha alma despertava, e eu me sentia perto do tango-sangue que aprendi a amar.
Sinto, mas não posso louvar o projeto, a apropriação indébita e desqualificada que fazem da música-marca de um povo. É um corpo estranho, uma visão patética e muito bem embalada, uma pantomima de luxo que não faz jus à bandeira que pretende defender, mas que não defende. Simplifica, reduz e publica no YouTube, para ser descartada logo a seguir.
O Gotan Project é pouco, pouco demais para o tango.

quarta-feira, junho 20, 2007

Taiguara


Uma tarde qualquer, lá pelas quatro, eu no computador e um longínquo pagode a emanar de algum vizinho. Bocejos na alma, a tolerar aquela mesmice... Mas de repente o mesmo já não era tão mesmo assim: entrou pelo quarto a música Viagem, do Taiguara, e eu me assustei feliz.
Taiguara... Um moço tão íntegro, tão cálido e lírico, talvez o primeiro a cantar as esperanças da era do amor livre... Que sabia como ninguém tecer sonho, poesia, letra e música em algo que falava, de fato, àquela juventude da qual eu fazia parte. Lembrei-me de seu rosto sincero à frente do microfone em tantos, tantos festivais... Modinha, Helena Helena, Universo no Teu Corpo...
Taiguara. Que bem aquilo me fez! Corri então para os braços da abençoada tecnologia e fui escavar o eMule à procura dele. Batata! Tava tudo lá, inclusive uma das canções mais lindas que já ouvi na vida, e que ele tão brilhantemente defendeu (é assim que se dizia) numa das primeiras edições do Festival Universitário da Canção Popular: Nada sei de eterno, de Aldir Blanc e Silvio da Silva Jr.
Os Festivais Universitários revelaram Aldir, Silvio, Ivan Lins, César Costa Filho e uma infinidade de outros grandes da nossa MPB. Eram todos integrantes do MAU (Movimento Artístico Universitário), a primeira grande insurgência estudantil contra a indústria cultural, já então selvagem. Deu certo, o Brasil ganhou, a juventude ganhou, porque tudo naquela época, afinal, era bandeira pra gente.
Essa canção, gravada pelo Taiguara, ficou em mim a vida inteira. Lá pelas tantas da década de 80, para ajudar uma amiga cantora, lembrei-me dela e fui pedir ao Aldir autorização para que a moça a cantasse. Alguém me conseguiu o telefone dele e expliquei a situação. - Olha - disse o Aldir - eu nem tenho mais esse disco, só a minha mãe é que tem. Faz o seguinte: vai lá em casa no dia tal que alguém te leva até a minha mãe e você pega emprestado.
Fui à casa dele, em algum lugar da Tijuca. E uma de suas filhas, que devia ter uns dez anos, foi comigo impávida até a casa da avó, pertinho, no máximo umas duas quadras.
A mãe do Aldir já sabia e recebeu-me à porta. Foi à estante e pegou um daqueles compactos duplos com capa plastificada - era cor de laranja - e entregou-me com um suspiro. - Olha, eu tenho muito ciúme desse disco, esta é a música do Aldir que eu mais gosto. Por favor me devolva o mais rápido possível, tá?
A essa altura eu já estava com remorsos, pois senti que lhe doía separar-se daquele tesouro. (Eu bem sabia que era um tesouro.) Levei o disco pra casa com mil-e-um cuidados, gravei (numa fita cassete, lógico, é o que se tinha) e devolvi no dia seguinte.
Ensinei a música à minha amiga cantora e guardei a fita para curtir em casa. Às vezes até levava para o trabalho para ouvir num daqueles gravadores pequenos, de jornalista. E assim foi, até o dia em que esqueci a fita no escritório e uns amigos meus, engraçadinhos, resolveram escutar. E desgravaram! Desgravaram sem querer!
A princípio fiquei atônita. Custei a acreditar. Depois de toda aquela viagem pra ter a música... Mas aos poucos fui me conformando: nunca mais ia conseguir mesmo, então... toca a vida pra frente.
Pois agora estou prestes a conseguir, a ressuscitar essa pérola do Aldir que é grande, grande, mesmo que quase ninguém conheça.
E o Taiguara, com sua ternura na voz, encanto nos olhos e firmeza no olhar, volta para mim com todos os tons psicodélicos que fizeram sonhar os meus 15 anos, desenhos em luz negra a girar nas paredes da alma, margaridas pelo ar, batas indianas e cachos nos cabelos.
Taiguara que fez um Brasil difícil tão mais bonito! Amado, censurado, livre-feliz, um jovem com um destino, como tantos... destino de cantar o amor e de levar toda a gente a cantá-lo.
A saudade do Taiguara é um pouco como a saudade de ter esperança, como a gente tinha, num futuro diferente... Onde as crianças pudessem cantar livres sobre os muros e ensinar sonho aos que não soubessem amar sem dor... Com o passado a abrir os presentes pro futuro, que não dormiu... e preparou o amanhecer.

sábado, junho 16, 2007

Ariano


Quando se abriram as cortinas do auditório de O Globo, no último dia 13 de junho, a visão de Ariano Suassuna sentado em sua poltrona, emoldurado por painéis em tons quentes e ilustrados por gravuras suas, deu-me um nó na garganta que logo me assaltou os olhos. A emoção pura de vê-lo ali, tão simples em sua grandeza, foi quase incontrolável. Foi como se visse o Brasil que eu queria.
Porque Ariano é, hoje não tenho dúvidas, o retrato do Brasil que eu queria; firme, resistente, um coração enorme e um espírito que não se dobra quando se trata de defender as suas convicções.
Se o Brasil fosse Ariano, talvez o nosso povo pudesse celebrar a rica simplicidade de suas raízes sem se permitir ser invadido pelos abusos diários, pela corrupção e pela indignidade. Talvez esse povo tivesse menos celulares de cartão, roupas importadas de $ 1,99 (que, em geral, são doações internacionais subtraídas por receptadores), bugigangas tecnológicas da China, mp3 no ouvido. Mas teria mais alegria de viver, mais respeito por si mesmo, mais zelo pela nacionalidade, pelo Brasil que lhe corre nas veias.
Se o Brasil fosse Ariano, a nossa alma estaria preservada, com seu quê de tristeza ou de malícia, contra a tentação renitente de se negar três vezes diante de qualquer cenoura estrangeira que nos balançam à frente.
Teríamos medo de virar depósito do lixo dos ricos e vergonha de consumir produtos descartados da cultura mais imediata e sem rumo, filha unigênita da falta de talento e perspectiva. E teríamos força para defender-nos do mal que se espalha indiscriminadamente pela glamurização do crime, pela injustiça e impunidade.
Ariano resiste. Com sua beleza senhorial, sua firme inteligência, vitalidade e humor sempre pronto a arrastar todo mundo no galope do sonho e no riso a cavalo. Transitando agilmente entre um e outro, fala abertamente de tudo aquilo que a nossa alma aprendeu a esconder! E a gente ri com ele, comunga com ele, galopa com ele, renasce feliz...
Se o Brasil fosse Ariano, a gente teria orgulho daquilo que realmente somos, não daquilo que inventamos ser, de acordo com a ocasião. Teríamos por dentro e por fora aquela vida, aquela fibra, a energia airosa e o olhar firme, a palavra precisa e o gosto fundo da alegria.
Se o Brasil fosse Ariano, esse povo seu filho não seria cúmplice no esfacelamento da sua própria cultura. Colocaria os "outros" no seu devido lugar... guardando dentro de si o que importa, o que é universal, obviamente. Mas aqui, no nosso quintal, ninguém iria mandar e nos dizer o que presta ou o que não presta.
Se o Brasil fosse Ariano, o seu exemplo haveria de bastar para arrancar da terra e dos corações o que temos de melhor. Seríamos mais livres, menos judiados, não aprenderíamos a excluir e sim a abrigar, trataríamos de cuidar do equilíbrio necessário para que todo homem se pudesse olhar como um igual, num espaço comum em que as diferenças não humilhassem e despedaçassem tantos seres humanos.
Teríamos pressa em recuperar a alegria de viver, a felicidade de sermos tantos e tão belos em nossa diversidade.
Se o Brasil fosse Ariano, teríamos cuidado com a nossa infância para dá-la de presente às crianças e, com isso, ser crianças de novo... Crianças grandes com poder de criar uma lei que nos obrigasse a ser felizes, como diria Chico Buarque.
Por isso tudo Ariano fica em mim, mais que celebrado em seus 80 anos, entre a emoção que inunda e o riso que faz rebentar com sua verve única, sábia e colorida. Que o Brasil adora não por causa da Rede Globo, que no momento o centuplica como o produto que não é (ainda que se possa dizer, "bom, pelo menos mostra"...). O Brasil adora porque sabe que é um pouco como ele, que faz parte dele, que no fundo do coração esquecido é capaz de se reconhecer nas histórias que ele conta todo rasgado, desfeito e refeito na beleza da sua alma mais que brasileira.
Pedi um abraço, ganhei, e por um momento pude respirar a vida que emana daquele Brasil-feito-gente. Na saída, a porta do elevador emoldurou a sua imagem serena, autografando, sorrindo, ainda diante de uma fila enorme. E eu pensei, com os botões da minha esperança, que Ariano Suassuna é a prova inconteste de que o Brasil que eu desejo existe mesmo em algum lugar, já está plasmado, só falta mesmo acordar.

quinta-feira, junho 07, 2007

Alabê de Jerusalém (feito gente grande...)


"Ogundana é um nigeriano nascido há dois mil anos, que aos 12 anos sai de Ifé, cidade onde nasceu, em direção ao norte da África e, com 20 anos, chega às margens do Rio Nilo.

Vivia-se a década de 20 da Era Cristã. No império romano, um centurião curado por seus poderes convida Ogundana a ir para Roma. Ao chegar, graças à sua experiência no manuseio de ervas medicinais, é contratado para cuidar de feridos e doentes do exército romano.

Mas logo Pôncio Pilatos, então governador da Judéia, o contrata como terapeuta de sua tropa. Eles seguem então para Cesaréia, cidade em que Ogundana conhece Judith, o grande amor de sua vida. Apaixonado, o casal vai para a Galiléia, onde conhecem Jesus Cristo e o acompanham até a sua crucificação. Passados 20 anos do sacrifício do Mestre, Judith morre e Ogundana vai para o deserto da Galiléia, onde vive até o fim de sua vida. Hoje, Ogundana é uma entidade espiritual chamada Alabê de Jerusalém."
(Aquiles Rique Reis)

Hoje, Alabê de Jerusalém é uma ópera. Completa, com todos os cânones. Pra especialista nenhum botar defeito.
Por obra e graça de uma força da natureza que atende pelo nome de Altay Veloso.
Ópera brasileira, sim senhor.
Haverá puristas para questionar a existência de tal gênero?
Pode ser, mas seria desperdício e bobagem. Temos mais do que direito a figurar no cenário operístico com linguagem própria, tamanha é a riqueza musical que exibimos o tempo todo, aclamada mundo afora.
Alabê de Jerusalém será talvez a primeira, e Altay Veloso teve peito para encarar, assumir, criá-la com toda a sua esfuziante energia, todo o seu talento e amor. Isso mesmo! Altay Veloso exala amor. Tem uns olhos de bondade de derreter o mais empedernido dos homens; tem uma alegria de viver permanente, um quê de quem possui o entendimento do mundo. A simples visão do seu jeito brejeiro comove. E não precisa nem saber quem ele é, ele tá lá aí pra isso, o sorriso e a humanidade são os mesmos, sempre.
E essa humanidade foi, sem dúvida, o combustível que fez-lhe ferver o talento, nos últimos 20 (vinte!) anos, até que concluísse o trabalho da sua vida, a grande obra que perseguiu com doce obstinação, e ofereceu no último dia 30 aos olhos e ouvidos do mundo: Alabê de Jerusalém.
E não podia ser diferente: o Alabê fala de amor, pois veio do próprio amor. E numa língua que todos entendem: a da tolerância, da paz, do perdão, da grandeza, da comunhão, do fim das diferenças, da celebração da vida. Esperança em forma (e que forma!) de arte, arte para todos, para multiplicar os pães em tempos de insanidade, onde mais do que nunca é preciso alimentar as pessoas com o bem maior que nos garante a condição humana - esse mesmo, o amor indiscriminado, total, absoluto, salvador.
Creio que Ogundana em pessoa e toda a sua legião trataram de tudo lá de cima, para que Altay tivesse a seu lado as pessoas certas para tornar possível aquilo que vimos em cena, no Teatro Municipal do Rio, (infelizmente) apenas por uma noite.
Fábio de Mello, um dos artistas contemporâneos mais completos deste país, foi escolhido para embarcar nesse sonho já há alguns anos. Coreógrafo, criador, encenador, iluminador, dono de uma cultura musical e de uma dimensão cênica únicas, Fábio cruzou o portal, acompanhado de sua mâitre de ballet e ensaiadora Bete Spinelli, e dinamitou a ponte atrás de si. Alabê tornar-se-ia algo irreversível em sua vida. E também Marcelo Marques, premiadíssimo figurinista e cenógrafo, com sua sensibilidade à toda prova. E Leonardo Bruno com todo o seu conhecimento e talento. Além de coro, bailarinos, cantores, um elenco de 120 pessoas.
Acordar o Alabê de seu sono de séculos foi um trabalho digno dos épicos de Cecil B. de Mille. Foi preciso determinação, vontade além da vontade, talento disposto a trabalhar quase até à exaustão. O providencial patrocínio da Petrobras, sabidamente o grande mecenas atual da nossa cultura e diversidade, parece deixar perfeitamente claro que, sobretudo para o Brasil e os brasileiros, a cultura é pão indispensável no cardápio de cada dia. E necessária nos quatros cantos dessa terra, nos mais recônditos lugares, e mais desesperadamente ainda onde o dinheiro não pode comprá-la.
A ópera Alabê de Jerusalém é do povo, sim - e não porque seja popular ou popularesca no sentido pejorativo em que muitas vezes tais adjetivos são usados. Muito, aliás, pelo contrário. É do povo porque respeita a sensibilidade das pessoas diante da qualidade musical e cênica. É simples na linguagem sem nunca ser simplória. Flui com facilidade sem jamais ser "fácil", ao contar uma história que todos conhecem sob um prisma novo, o da diversidade religiosa. E estimula as pessoas a buscarem o sonho em cada momento seguinte, como se Cristo chegasse à terra pela primeira vez. É do povo porque prova, acima de tudo, que todos podem falar a língua da verdadeira arte, que é clara, límpida, honesta e brilha com as cores do talento.
Alabê de Jerusalém é uma obra de ruptura. Traz em si o frescor que precisamos para substituir estruturas emboloradas, abrir o espírito para um "novo" que é simples, aberto, direto, cheio de luz. E ao mesmo tempo sutil, enunciado, solto no ambiente para ser percebido por cada um com aquilo que tem dentro... informação, sensibilidade, sentimento ou o simples gostar.
Enquanto espetáculo, Alabê de Jerusalém tem boa dinâmica, ritmo, fluência. E bons cantores nos papéis e canções certos, além de uma concepção estética refinada, de tintas densas, que reveste a história de uma bruma importante para dimensioná-la no tempo sem tempo da própria humanidade. Se por vezes o palco parece um tanto alvoroçado, isso parece refletir a própria indefinição das almas naquele momento da história. É a eterna contradição entre a possibilidade da salvação e a impossibilidade de recebê-la... enfim, a contradição do próprio homem.
Na linha da ruptura está a acentuada presença da dança, que assume um protagonismo poucas vezes visto numa ópera. Em geral, os números de dança nas óperas funcionam como elemento de ritmo, para dar cor e permitir algum descanso aos cantores. No Alabê não; a dança é o elo que desenvolve a história, pontuando com profundidade a música. E o ballet obedece a uma arquitetura sensivelmente concebida por Fábio de Mello para acompanhar o crescendo na intensidade dramática. Algumas cenas, que mais parecem produto da mente de hábeis pintores renascentistas, bem mereciam tomar de assalto a boca de cena, tamanha a sua força.
De lamentar foi a ausência da orquestra, que por razões técnicas (?) não conseguiu acompanhar a magnitude da obra. Teria faltado tempo? Alma? Vontade? A exuberante musicalidade do Alabê merecia mais, merecia a polifonia natural e ao vivo que cabe perfeitamente no cenário escolhido para sua representação. Os talentosos e profissionais intérpretes conformaram-se com o bg, mas... é claro que não é a mesma coisa.
A atuação de Altay Veloso como o próprio Alabê é um susto de felicidade bem no meio do nosso espanto; estamos diante de alguém que vai além de tudo aquilo que se espera dele e dá muito mais, oferece-nos um ator completo abençoado por todos os orixás, com veemência e doçura, técnica e coração, brilho e verdade. O personagem Alabê inunda-nos de uma vontade de ser bons, de seguir com ele, de levantar bandeiras brancas e firmes pela paz que precisamos reinstaurar no nosso mundo... É mais que uma encarnação de personagem e vai além da incorporação de um sonho; é um ato material de talento, justiça, claridade.
A representação dos orixás ao fundo, na estratégica plataforma concebida por Marcelo Marques, é comovente e paira sobre tudo, evocando os protetores que, tenham lá que nomes forem, acompanham não só o Alabê como a própria humanidade durante a saga cristã. Além desses, destaque para os figurinos do próprio Alabê, de Judite e do corpo de baile.
Fábio de Mello criou um poema épico no qual a obra de Altay Veloso não só se encaixa à perfeição, como brilha intensamente.
O público carioca, o público do Brasil - e por que não? - o público do mundo mereciam uma temporada digna dessa obra-prima que veio mudar o conceito da representação da cultura brasileira.
Viva o Alabê de Jerusalém entre nós, e de preferência por mais uma eternidade!

sexta-feira, junho 01, 2007

Ecos de maio


Permaneci em maio com a alma em polvorosa.
Foi mês de arquitetar destinos, de lançar-me ao mar, de nadar contra a corrente.
E de encontrar insuspeitas felicidades.
Os primeiros dias foram de preparar-me para o primeiro Portugal, onde cheguei dia 4 com malas pesadas e alma leve, aberta ao que me quisesse vir.
E encontrei os novos cheiros que vieram preencher os aromas que antes recendiam só na minha imaginação.
De Lisboa ao Porto, ao Douro e de volta, de lugares tão inimagináveis como Pinhão e Casal de Loivos, Santa Maria da Feira, Estarreja, São Jacinto, Torreira, Matosinhos, de Coimbra, só fiz apaixonar-me por cada instante, por cada palavra trocada com amigos antigos e novos, estranhos que não estranhei, amores que o simples amar transformou em amigos de sempre, personagens que viraram gente no coração e no abrir-se para o outro.
Meu maio foi mais português que a própria primavera, essa a espalhar seu calor veranesco pelos caminhos, o ar, as certezas e virtudes, os sonhos feitos reais.
De volta, além dos cds e dos livros, o vivo sentir da memória de tudo.
A cor profunda de tanto bem querer.
Fui cumprir o ideal da terra e voltei de lá mais brasileira, mesmo com pena de voltar.
E cheia de saudades por esse tanto mar.


Convido-vos a andar comigo pelos caminhos de Portugal em
Portugal, Portugal