sábado, agosto 23, 2008

Minha alma canta...

Caetano e Roberto durante os ensaios
Foto: Divulgação

Há momentos extraordinários na vida. Que trazem surpresa e êxtase, sentimentos leves e fundos suspensos no ar. Momentos de simples beleza, puros, comoventes. E que, às vezes, fazem história também.

O encontro entre Caetano Veloso e Roberto Carlos em torno da obra de Tom Jobim, ontem à noite no Municipal do Rio, foi um desses.

Desde que soube do concerto, tive vontade de estar lá. E graças à paciência do meu amigo Paulo Henrique, que enfrentou galhardamente a fila que deu conta dos ingressos todos em apenas três horas - sem chance pro pessoal que se fiou na internet -, tive essa felicidade.

Devo declarar aqui que a minha fidelidade ao Rei é referencial apenas. Admiro, contudo, uma pessoa que consegue manter a popularidade em alta - e que alta! - há mais de 40 anos, quase sem abalos. Ninguém consegue isso por acaso. Acompanhei a Jovem Guarda, adoro várias músicas emblemáticas, mas fui me afastando do Roberto quando enveredou por algumas estradas um tanto duvidosas, para o meu gosto pessoal. Mas devo dizer também que a figura dele é gostável; é como um velho amigo. E dos poucos que ainda diz "bicho" com um jeito todo especial. Gosto das marcas registradas do Rei. E no entanto nunca, até precisamente ontem, tinha me arriscado a um show seu.

Caetano é o meu São João menino, uma paixão eterna e irrestrita. Caetano é o profeta de um futuro presente - músico, obra e criador numa só pessoa. Saber da história dos "Caracóis", em anos recentes, foi um prazer e uma emoção. Falo da visita de Roberto ao grande artista no exílio em Londres e a música-homenagem que a gente tanto gostava de ouvir, de (então) secreta e comovente inspiração. Mas Caetano e Roberto deixaram outras marcas na história: as canções que Caetano fez para o Rei cantar - "Como dois e dois", "Força Estranha" e "Muito Romântico",- a citação na letra de "Baby" (ouvir aquela canção do Roberto)...

Tudo levava a crer, portanto, que na noite de ontem estaríamos diante de um momento histórico.
E foi o que aconteceu, em todos os sentidos. O Teatro Municipal descortinou-se para uma camada do público que jamais o vira - e provavelmente por pura distração ou esquecimento. E o público de Roberto, em franca e assumida maioria, tomou os espaços do Teatro em profusão. Estava ali justificada a fila descompassada para disputar os ingressos.

Tem suas particularidades, essa classe média que aceita sem maiores filtros a cultura de massa que lhe é servida em abundância, produto de um sistema social baseado no recorte, e não no todo. Em muitos países do mundo, da América Latina inclusive, todas as culturas convivem ricamente. Na escola, as crianças têm a opção de estudar música e se habituam tanto às salas de concerto quanto aos espetáculos de rock ou música popular. Há lugar para tudo.

Aqui ocorre um fenômeno curioso: há preconceitos malucos contra a arte dita "erudita", que fazem com que um volume enorme de pessoas de razoável poder aquisitivo se excluam de certos contextos por considerá-los privilégio de poucos.

No Municipal, ontem, era evidente a surpresa em muitos rostos bem trajados. Era como se, de repente, batessem aqueles célebres "cinco minutos" e a pessoa pensasse:

- Nossa! Como isto aqui é bonito! Por que será que eu nunca vim aqui antes?

Respeitoso, o público de Roberto encheu de orgulho o nosso Teatro. Com raríssimas exceções, fez-se o silêncio condigno. E quando o entusiasmo deu lugar a comoventes e afinados coros, como no caso de Samba do avião, interpretado por Roberto, e Eu sei que vou te amar, cantada pelos dois, isso se deu com imenso cuidado e carinho. Demonstrações claras de que o que falta não é sensibilidade, e sim a percepção de que música é música, e todos os estilos cabem na alma. Com certeza, o amor ao Rei terá conquistado ontem novos corações para o Teatro Municipal também.

No palco, as homenagens de cada um a Tom Jobim foram de extremo bom gosto, tanto musical quanto cenicamente. A alta tecnologia por trás dos cenários nos devolveu a alegria de um Rio que era só música, sol, céu e mar. O Rio de Tom, Vinícius, da Bossa-Nova cinqüentona e inteiraça.

De desafinado, mesmo, só o backlight do projeto
Itaú brasil - escrito assim mesmo, com "b" minúsculo - que pairou no palco até o início (atrasadíssimo, por sinal) do espetáculo. A publicidade anda tão agressiva! É óbvio que não tenho nada contra os grandes patrocinadores; sem eles a nossa cultura estaria infinitamente mais capenga do que já está, por absoluta asfixia financeira. E os bancos, mais do que qualquer outro setor da economia, têm em mãos os instrumentos para revitalizá-la. Mas francamente, um backlight no palco é de um mau gosto extremo, uma invasão de espaço sacralizado que não deveria ocorrer. Há modos e maneiras de marcar presença sem atirar um "tô pagando" assim tão evidente em cima das pessoas - que por acaso também pagaram, e muitas regiamente, para ali estar.

Caetano Veloso é hoje, além de pensador, esteta, compositor e uma das grandes figuras da nossa intelectalidade, um instrumento musical inigualável. A sua voz está cada vez mais bonita e perfeita. Com sua espontaneidade e beleza, comportou-se quase que religiosamente em relação à obra jobiniana. Interpretou a canção Por toda a minha vida praticamente como se fosse uma ária. Sereno e muito à-vontade, uniu emoção e elegância, suavidade e coração, força e delicadeza. Envolveu-nos numa aura apaixonada, marcada pela saudade de Tom e talvez um pouco de nós mesmos, daquele "nós" que gostávamos de ser quando ouvíamos e vivíamos as músicas do maior entre os Brasileiros de Almeida.

Roberto Carlos comoveu, na sua pequena voz tocante, aquela voz que está na nossa alma desde sempre. Samba do avião, Lígia (com a boa lembrança, em vídeo, do dueto com Tom em um de seus especiais de fim de ano), Corcovado, Por causa de você... Roberto tem uma marca, um poderoso carisma, uma força que emociona sempre, uma história que não merecia mesmo ser manchada pelo triste episódio que envolveu o processo contra o jornalista Paulo Cesar de Araújo, e que confiscou uma tremenda e amorosa biografia musical do cantor, baseada em mais de 200 entrevistas e em material publicado em jornais e revistas. O fruto da pesquisa de uma vida, feita com o conhecimento do cantor, foi confinado a um galpão de propriedade do Rei, para apodrecer longe da memória.

Não sei quem terá levado o nosso Roberto Carlos a ter uma atitude tão feia e incompatível com sua biografia. Caro Rei, eu peço a você que repare isso, em nome de tudo o que vi no Teatro Municipal, na noite de ontem! Você sabe que o livro foi um ato de amor à sua obra, vida e carreira. O argumento utilizado pelos advogados - de que somente Roberto deveria lucrar com a sua obra - é de uma fragilidade absurda, pois muitos e muitos artistas já foram biografados por escritores competentes e nem por isso deixaram de ganhar muito dinheiro. E nem por isso os biógrafos sequer chegaram perto de enriquecer.

Roberto, vire de uma vez essa página negra e devolva ao seu público - a esse mesmo público que, por causa de você, descobriu ontem o Teatro Municipal do Rio - a oportunidade de conhecer o excelente trabalho sobre a sua vida que dorme, intocado, em porões onde um importante registro da música brasileira, em breve, virará comida de traças. E devolva, sobretudo, ao zeloso biógrafo Paulo Cesar de Araújo a alegria de compartilhar o seu trabalho de autor com todos os que te admiram.

Mas voltemos ao palco do Teatro Muncipal, na noite de 22 de agosto de 2008. Roberto e Caetano, que abriram o concerto com Garota de Ipanema - sentados em banquinhos, como se estivessem ali batendo papo há horas e sempre fazendo mil salamaleques um para o outro, cortados por carinhosos (e verdadeiros) abraços e beijos - tiveram a feliz idéia de fazer os papéis de Dick Farney e Lúcio Alves e revisitar a memorável Tereza da Praia, mais carioca impossível. E fechar, muito poeticamente, com Se todos fossem iguais a você, um espetáculo marcado pela delicadeza, em que nada foi desperdiçado: luz, cenário, timing, a presença de músicos magistrais, o repertório e o melhor dos dois solistas.

Enquanto ouvia, do meu excelente lugar na fila C da galeria, o povo entoar baixinho, quase num sussurro, o Chega de saudade - em excelente back-vocal para os artistas -, senti, sem esforço e com o coração nas nuvens, o peso da história. E sem precisar de uma camiseta com a inscrição "Eu fui".

Agora atenção, Itaú: não bastam os concertos previstos para o Rio e São Paulo. Esse espetáculo, a bem da música popular brasileira, merece tournée nacional.

Oh vento, que faz cantiga...

Foto: Capa do livro "Dorival Caymmi", de Francisco Bosco
Edição PubliFolha (2006)


Coqueiro de Itapoã,
coqueiro...
Areia de Itapoã,
areia...
Morena de Itapoã,
morena...
Saudade de Dorival
,
me deixa!....


(Dorival Caymmi - 30/04/1914-16/08/2008)