sábado, novembro 29, 2008

Mercedes

Mercedes Sosa - Foto: Reuters

Não sei direito por que a chamam La Negra. Decerto já devo ter lido isso em algum lugar. Mas para mim é Mãe Terra, talvez a própria terra, lagos andinos e cordilheira, rios, cataratas, o olhar fundo e sincero de quem já viu tudo. Olhar que, aliás, ela já tem há muito tempo, bem antes de volver a los 17, ao lado de Milton Nascimento, num disco onde vira e mexe eu deixo a minha alma de molho. Talvez agora, sentada no meio do palco em toda a sua magnificência, ternura e força, as suas profundezas fiquem mais evidentes ao olhar comum. Mas no meio da arena de um Maracanãzinho lotado, tocando bumbo para ressoar "Drume, negrita", já era assim.

Apesar do Vivo Rio, com seus garçons e bandejas invasivos, Mercedes Sosa esteve ontem entre nós com sua grandeza tranqüila, a voz mansa, firme e pausada, as convicções que nos ensinaram o bê-a-bá da latinidade num tempo de sincera fé. Aquela voz que nos tomava a todos e sacudia os alicerces, desafiando-nos a abrir o peito, fez ali o seu milagre de cada dia. E ao ouvi-la tive saudades de mim quando assinei o manifesto pela liberdade de Alex Polari de Alverga, quando participei do Primeiro de Maio que poderia ter ido pelos ares em 1978, ou quando caminhei léguas na Presidente Vargas pelas Diretas Já. Mercedes Sosa, com sua retumbante coerência, foi um dos símbolos dessa época em que tentar mudar a realidade do nosso continente era praticamente obrigação.

Sentada diante das partituras, envolta em belos panos vermelhos, atenta a tudo, Mercedes comanda com as mãos os movimentos planetários e nos rege a todos, músicos e platéia. Entre palavras de carinho para os amigos e a bisneta pequenina, que não cansa de lhe jogar beijos, essa mulher impressionante desfila uma hora e meia de canções, as de hoje, as de sempre, as que nos desatam as lágrimas quentes de saudade, às vezes de tristeza por não termos ido além com as reformas do mundo. Ah, mas quem éramos nós então? Os mesmos de hoje? Mudamos ou foi o mundo que mudou? E a saída, onde fica a saída? Certamente não na sinalização discretamente iluminada nas laterais do Vivo Rio...

A voz de Mercedes Sosa tem o poder de dissolver paredes de pedra, paredes de palavras, de sentimentos. A transparência com que o seu olhar presente e vivo nos reflete é mágica e esmagadora. Lembrei-me de um SEM CENSURA há mais de 20 anos, ainda nos áureos tempos da Lucia Leme (sem qualquer crítica à competência de Leda Nagle), quando diante dessa mulher todos os convidados choraram. "Eu posso te tocar?", perguntou a apresentadora, protagonizando um dos momentos mais verdadeiros do nosso jornalismo televisivo. Eu, em casa, virava um afluente do Rio da Prata.

Mercedes, mais que símbolo, é uma força da natureza latina. Representa os nossos povos com clareza de espírito, força de viver e aquele talento imenso que aprendemos a amar e respeitar. Até quando canta uma simples canção de amor, Mercedes é toda pátria, é toda terra, é toda gente. É rainha no centro dos iguais, porque é assim que prefere ser. Com alegria diante do novo e firmeza diante das injustiças que o mundo não aprendeu a apagar.

Acompanhada de músicos impecáveis, Mercedes Sosa mais uma vez compartilhou conosco a beleza das canções e a humanidade que faz parte da sua composição química. Ao levantar-se no final e ensaiar uns passos de dança ao som do estribilho de Maria, Maria, a golpes de punho cerrado, mostrou o quanto corresponde ao nosso amor. E o quanto ainda é aquela Mercedes que, com seu bumbo e sua voz, abria caminho na história para a nossa verdade latina.

Mercedes Sosa, uma das mais belas faces da nossa alma, eu te abraço aqui neste blog!

sexta-feira, novembro 21, 2008

Um velho filme

Burt Lancaster e Claudia Cardinale em
O Leopardo, de Lucchino Visconti (1965)


Nada como um velho filme para despoluir a cabeça carregada de cotidiano, de disputas, problemas no trânsito, chuva, a crise (mas qual, se há tempos que não se vive de outra coisa?), as pequenas tensões que nos consomem exageradamente. Mesmo se a tv é de 14 polegadas, um velho filme aciona mecanismos internos insuspeitos que nos fazem navegar por épocas não vividas, cidades que não conhecemos bem, mas onde nos sentimos em casa, em aviões cheios ou metrô apinhado, em ônibus desolados ou carros muito velhos, no futuro, no passado, na mente de criminosos.

Às vezes a gente se lembra de tudo, até do cheiro da primeira vez que o vimos. Às vezes nunca o vimos, mas de tanto ouvir falar, acreditamos mesmo tê-lo visto. Às vezes só lembramos de partes e ficamos abismados quando aparece um detalhe que o HD da memória corrompeu. E há aqueles que vimos dezenas de vezes, apesar de todo mundo chamar a gente de maluco.

E não importa que seja bobo, não é fundamental que seja cult, cinema europeu ou japonês. O que vale mesmo é a magia que opera na gente. É a viagem além da técnica, da criatividade, da precisão da fotografia ou da luz. É aquilo que os nossos olhos comunicam ao coração, e que faz com que um velho filme nunca mais nos deixe. É a música, o som do silêncio, um ator que a gente gosta e transforma num velho amigo, num parente, num amante, num confidente.

Gosto dos canais de filmes antigos. Eles me confortam, providenciam cobertor, travesseiros e às vezes uma capa mágica ou um disco voador, uma cápsula do tempo - coisas simples e providenciais em tempos insanos. Uma de minhas paixões, há uns dois anos, era o Canal Retrô, uma raridade argentina que mais parecia um baú audiovisual de relíquias. Como tudo que é bom, sumiu da tv a cabo e, segundo soube recentemente, foi vendido a um grupo americano e será desativado. Na verdade, a onda vintage começou com o canal Boomerang e os melhores desenhos do mundo (claro, os da "minha" infância). Esse, coitado, perdeu todo o glamour! Sei lá, também deve ter sido comprado, porque fala uma outra língua, só passa séries com adolescentes retardados, habitantes sei lá de que planeta. Bem, ou mal, tinha uma identidade, era dedicado à causa da lembrança. Qual pai da nossa geração não gostaria de apresentar Dom Pixote, Maguila e Wally Gator ao filho? Agora, virou qualquer coisa...

Mas voltemos aos filmes. Tive recentemente o prazer de rever O Leopardo, uma das obras-primas de Visconti (que aliás adoro, apesar de alguns amigos o considerarem datado e chato...). Que primor, que felicidade, delicadeza e cuidado na produção, atores maravilhosos em todo o seu esplendor, um belo roteiro (provavelmente melhor do que o livro que o inspirou). No final de outubro, no meio de uma maratona em homenagem ao aniversário de Rita Hayworth, finalmente fiquei sabendo por que nunca houve uma mulher como Gilda. Ah, enfim consegui ir além da cena do banheiro para descobrir o segredo de Norman Bates, em Psicose. Rememorei com gosto a prodigiosa trilogia de O Poderoso Chefão. E me surpreendi muito ao rever com um amigo o inimaginável Tambor, pois não lembrava de muitas passagens fundamentais.

Ontem topei com a versão original de Metrópolis, de Fritz Lang. Que grande filme para 1925! Eu fui uma das pessoas que foi apresentada ao filme na versão colorizada (houve um tempo em que isso virou moda) e com uma estupenda trilha sonora de rock, na década de 1980. Gostei tanto que comprei o disco e tenho até hoje. A trilha original do filme é muitíssimo pesada, opressiva mesmo em certos momentos. Sinceramente, o rock da primeira vez teve muito mais impacto sobre mim!


Meu amigo Ricardo Leitner, do fascinante blog Tertúlias, é um cinéfilo contumaz e sempre traz à pauta alguma recordação recheada de beleza e histórias que poucos saberiam contar. Por sua inspiração, resolvi falar um pouco desse cinema de ontem, que também pode ser um pouco de hoje. Por que não? Saudosismos à parte, o novo e o revolucionário existiram em todas as épocas da arte. Em algumas com maior intensidade, em outras mais raramente. E o que havia de rico em cada momento de criação costuma permanecer intacto na obra, mesmo que se passem muitos anos. Um dia disse à minha filha: o que conta num filme não é ser velho ou novo, é ser bom. É essa a diferença.

É claro que a magia dos velhos filmes não anula a força criadora que está por aí agitando a tela grande, venha de onde vier. Mas pode contar que a garotada que faz acontecer, que bota a cara no mundo, cria e nos emociona, com certeza já viajou (e continua a viajar) em muita sessão nostalgia. Vai por mim.