domingo, novembro 07, 2010

Em defesa da obra de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato

Qual é a ideia? Instaurarmos uma Inquisição literária no Brasil?

Não posso me furtar à minha responsabilidade de brasileira, quando recebo a informação de que uma senhora Nilma Lino Gomes, qualificada na matéria como educadora da Universidade Federal de Minas Gerais e conselheira da Secretaria de Alfabetização e Diversidade do MEC, recomendou o banimento da obra de Monteiro Lobato da lista de livros a serem distribuídos às escolas brasileiras, sob acusação de “caráter racista da obra”. A matéria dá conta, também, que a recomendação da dita senhora teria sido aprovada pelo Conselho que integra.

Estamos no ano de 2010. Acabamos de sair de uma acalorada discussão eleitoral em que um dos temas mais disputados foi a liberdade de expressão. Possuímos uma constituição democrática e vivemos em um estado de direito. Como é que, dentro desse quadro, inicia-se uma caça às bruxas em cima da obra de Monteiro Lobato, reconhecidamente um dos mais importantes escritores da nossa literatura?

Monteiro Lobato foi o primeiro autor brasileiro a dar às crianças a oportunidade de vivenciar, na literatura, uma infância brasileira, nacional, legítima, com elementos da nossa cultura. Lobato nos permitiu crescer com uma consciência de brasilidade. E dentro dela ainda nos ensinou geografia, gramática, aritmética, nos deu uma boa noção sobre mitologia – e ainda permitiu, generosamente, que os heróis, heroínas, príncipes e princesas dos contos de fada da literatura internacional convivessem com nossas tradições. Tenho uma profunda dívida de gratidão para com ele e sua obra, pois fui uma dessas crianças. Aliás, uma entre milhares, que não ficou reduzida a um imaginário oficial que não nos considerava capazes de “reinar”, criticamente, em meio a todo tipo de informação. Ganhamos uma consciência coletiva chamada Emília, por meio de quem as dúvidas e questões que toda criança tem ganhavam, mesmo com sua dose de fantástico, uma possibilidade de expressão.

Sem querer lhe conferir um grau de importância a que não faz jus, pergunto-me de onde sai uma Nilma Lino Gomes da vida, com essa postura retrógrada e totalmente incompatível com a realidade do mundo, que se arroga o direito de decidir se a obra de Lobato é ou não racista, se é ou não benéfica à sociedade brasileira, se é ou não digna de circular nas mãos de milhões de crianças com potencial de ser felizes como eu fui ao lê-lo. Vamos ter Inquisição? Temos agora um Conselho que nos diz o que devemos ler? Lembro-me de uma frase incrível que Adélia Prado falou, numa palestra na Flipinha, há alguns anos: - Livro tem que ser oferecido às crianças que nem banana na feira. Elas olham, escolhem e pegam o que querem. Salve, Adélia!

Não reconheço nessa senhora e nem em pessoa alguma autoridade para julgar e expurgar a obra de um autor como Monteiro Lobato em cima de minúcias e especificidades sobre as quais o crivo de uma simples análise crítica, em vez de condenar, pode servir para traçar um retrato da sociedade em que Lobato viveu, do período em que sua obra foi escrita e do pensamento de um Brasil que, se pararmos para pensar, não mudou tanto assim. Porventura os prédios de luxo das grandes capitais não selecionam quem pode ou não usar os elevadores principais? Porventura não convivemos, no século 21, com discriminação salarial que atinge, por exemplo, mulheres e pessoas negras? Por acaso a nossa sociedade não tem “conteúdo racista”? E o que vamos fazer com ela, queimá-la em praça pública?

Monteiro Lobato, como qualquer pessoa, cometeu erros em sua trajetória, inclusive no exercício da crítica literária. Mas esses erros em nenhum aspecto desmerecem a qualidade literária de sua obra e sua imensa, incomparável contribuição à sociedade brasileira, à nossa literatura e também ao nosso desenvolvimento, pois foi o primeiro a vislumbrar o potencial da siderurgia e chegou a ser preso por afirmar que o Brasil possuía reservas de minério de ferro e de petróleo.

Lembro-me de ter lido, há mais de dez anos, uma matéria jornalística em que se aludia a algumas passagens racistas na obra de Lobato. No entanto, uma professora especialista em sua obra, cujo nome infelizmente não me lembro, ponderou que “quem fala dessa forma da obra de Lobato demonstra não ter capacidade para compreender-lhe o alcance”. Tenho que concordar. Lobato demonstra, em toda a sua obra literária, simpatia e respeito pelo oprimido, pelas pessoas cujo valor a sociedade, de alguma forma, não reconhece. Agora me respondam: sua obra magnífica, profundamente analítica em relação à sociedade brasileira e profundamente esperançosa num futuro melhor para as crianças, sem falar em sua riqueza como literatura, no uso da língua portuguesa e na dimensão dos conhecimentos que transmite, vai pagar por um ou outro pecadilho racista que qualquer um de nós poderia cometer e ficaria por isso mesmo? Francamente!

Senhor Fernando Haddad, nosso Ministro da Educação, por favor! A sociedade brasileira não admite mais esse tipo de atitude. A censura foi abolida junto com o ocaso do regime militar. Nossa cultura não pode ser submetida a conselhos ou ditos “notáveis”, que se julgam com poder de determinar o que podemos ou não podemos ler. Só nos falta agora permitir que Monteiro Lobato – que tão perseguido foi, em vida, por suas ideias progressistas – tenha sua obra “julgada” por uma educadora obscura e obscurantista que infelizmente conquista, dessa forma tão lamentável, os quinze minutos de fama vaticinados por Andy Wharol.

sábado, outubro 30, 2010

Comunicar o desejo

O que nos move, da Laso Cia. de Dança
(Foto: divulgação)


Gosto de chegar ao teatro o mais vazia possível, quando vou assistir a um espetáculo. Muita informação cria expectativa – e muita expectativa fecha um pouco os olhos da gente para o que, de fato, podemos usufruir do que vai se desenrolar no palco.

Uma querida amiga, grande bailarina, me diz que sempre teve por hábito gastar todo o excesso de energia antes de entrar em cena e deixar no corpo só a quantidade necessária para interpretar seus papéis. Creio que essas duas reações, a minha e a dela, são parecidas: são duas formas de transformar a arte em alimento.

Eu, plateia, me alimento do que vejo e sinto, da troca com o que acontece no palco e da forma como isso me atinge. Então tratei de não me antecipar, quando fui assistir a O que nos move, da Laso Cia. de Dança, no teatro do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Li apenas o que veio escrito no convite.

O espetáculo, contudo, começou pela explicação: um texto, lido na abertura, dava literalmente o passo a passo para o espectador acompanhar a cena. Lembrei-me da mesma querida amiga e de sua sabedoria: em matéria de dança, se precisa explicar, é bom ter cuidado... Mas não posso julgar ainda, preciso ver primeiro.

A primeira impressão cênica é forte: vídeos velozmente projetados numa tela improvisada, à esquerda do palco, trilha refinada e o contraponto de um único ser bailarino, um tanto mal iluminado e praticamente impossível de identificar, sob um casaco com capuz. Ao lado, uma enorme estrutura cheia de roupas penduradas, presas umas às outras.

Logo sai de cena o casaco, que na verdade escondia uma bailarina, e aparecem os outros integrantes do elenco. Caminham pelo palco, tocam-se e visitam as roupas ao fundo; entram e saem delas em movimentos delicados, como se trocassem de pele. Esse vestir de uma manga, provar uma saia, arrebatar uma calça, tirar de novo e buscar outra peça, tudo embalado pela sempre impecável Dalva de Oliveira, na canção Lembrança, acontece num espaço sensível de memória, como se o ato de vestir/desvestir falasse, na verdade, de questões da alma, momentos de decisão, atitudes importantes a serem tomadas.

Já gosto do ritmo, sinto firmeza; são atores desenvoltos, têm química, são articulados. Há também toda uma relação entre o colorido das roupas penduradas, das roupas do corpo e a iluminação; remetem a um sépia guardado em gavetas, como um passado que está de visita.

O conjunto é carismático e o espetáculo se reveste de um bom-gosto básico, prende a atenção. Ainda assim, sou assaltada por uma velha e recorrente questão: onde é que está a dança, afinal?

Quem sou eu para tentar saber o que é dança, o que significa dança, nesse mundo repleto de paradigmas quebrados? No meu tempo, no reinado absoluto de Klauss Vianna e seu vasto talento, o que vejo agora neste palco se chamava expressão corporal. Era uma grande novidade, que ajudava imensamente os atores a descobrirem o movimento e a expandir seu trabalho interpretativo.

O adjetivo “contemporâneo” parece caber em praticamente qualquer manifestação de arte que aconteça sem regras específicas, a dança inclusive. Do clássico fez-se o neoclássico, deste a dança moderna, nomeada em contraposição a um conceito de antigo, ortodoxo. E desta nasceu o que se convenciona chamar, hoje, de dança contemporânea.

A desconstrução do movimento tornou-se quase que obrigatória; só esqueceram de que, para desconstruir, é preciso primeiro aprender a construir. A aula clássica, ainda fundamental para moldar a “limpeza” dos movimentos, foi relegada a um segundo plano, quando não abandonada.

Mas o que essa longa sessão sobre o movimento tem a ver com o espetáculo O que nos move?

Acho que tem muito. A Laso Cia. de Dança é uma companhia jovem, potente e criativa, bem dirigida e que consegue comunicar-se com a plateia, transmitir a mensagem, criar clima. A trilha sonora é brilhante, com destaque para a bela canção Le vent nous portera, do grupo francês Noir Desir, e pela música incidental construída pelo diretor Carlos Laerte, junto com o DJ Marcão.

Mas sinto falta de dança – de ver movimentos que, mesmo em meio a uma eventual crueza, podem e devem ser executados com beleza e refinamento. Nesse particular, acho que ainda há um bom espaço para avançar. O momento que mais se aproximou de uma coreografia, a meu ver, foi uma espécie de pas-de-deux elástico entre o bailarino Hugo Gonçalves e as mangas quilométricas do conjunto lilás vestido por Carolina Saraiva. A dupla construiu desenhos quase modernistas no palco, tirando partido justamente das possibilidades do figurino da bailarina.

Mas a força criativa do espetáculo repousa também em outros pilares. O uso de imagens tomadas na hora e projetadas na tela, combinado à leitura de poemas – principalmente por Maria da Lapa – e mesmo a um trecho de Lembrança, cantado teatralmente por Carolina Saraiva, é muito eficiente cenicamente. E os momentos de dilema, conflito, carinho, solidariedade, alternam-se com muito ritmo e clareza, ao longo do espetáculo. Aliás, a leitura inicial, a meu ver, é perfeitamente dispensável, diante da expressividade e da capacidade de comunicação do elenco.

A Laso Cia. de Dança é uma companhia na trilha da maturidade. Tenho certeza de que a percepção de algumas necessidades, como desenvolver melhor os caminhos coreográficos e ampliar a preparação dos bailarinos, virá a seu tempo. O corpo criativo do grupo – e isso inclui diretor, atores-bailarinos, iluminador, figurinista, produção etc. – reúne excelentes condições para aperfeiçoar, ajustar e reformular o que for preciso.

O que nos move é, em seu saldo geral, um espetáculo cativante e sobretudo sincero, feito mesmo com empenho e vontade de acertar. Daqui pra frente, com certeza, só pode ficar melhor do que já é.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Sob a luz de Marlene

Marlene Dietrich - Foto: coleção particular


Há alguns anos, um amigo me deu de presente a autobiografia de Marlene Dietrich. Até hoje não sei dizer se ele teve alguma razão especial para isto. O que sei é que meu vivo interesse pela mítica figura – que mal conhecia, além de alguns filmes – transformou-se, ao longo daquelas duzentas e poucas páginas, numa absurda e inesperada intimidade. Bem parecida, aliás, como a que experimenta o personagem Albert do espetáculo “Marlene Dietrich: as pernas do século”, após horas e horas de uma conversa surpreendente com a diva, a meio caminho entre o fascínio e a vertigem, entre o susto e o encantamento. Aliás, a boa e simples ideia de um diálogo perfeitamente possível entre duas pessoas “comuns” à sua maneira – a estrela, com sua profunda lucidez e prodigiosa memória, e o assustado e confuso entregador – funciona muito bem para dar o tom da sensibilidade que perpassa todo o espetáculo.

Sylvia Bandeira, na pele de Marlene Dietrich, fez-me sentir como se captasse no ar o momento exato da síntese: aquele momento definitivo no qual as experiências e vivências humanas e artísticas de uma pessoa se fundem e tudo, de repente, se encaixa – como se os elementos orgânicos, mentais, físicos, artísticos e intelectuais que compõem aquele ser tivessem esperado a vida inteira para, enfim, revelar-se em toda sua beleza, essência e densidade.

Estar linda no palco é apenas o óbvio. Além e acima disto está a luz – que afinal, segundo rezam os cânones do inventor de Marlene Dietrich, Josef von Sternberg, deve vir sempre de cima. E a luz é de Sylvia, em plena maturidade artística, com uma franqueza na incorporação da personagem que vai muito além da postura, do gestual e mesmo do timbre vocal. Com toda a disciplina e estudo que transparecem em sua atuação, ela é verdadeiramente Sylvia enquanto Marlene, e Marlene na pele de Sylvia. A voz, afinada e bem ajustada, abraça sem imitar o estilo e a teatralidade despojada de Marlene Dietrich. E emociona de verdade em várias interpretações. Johnny é o primeiro susto, no mais perfeito clima cabaré, tão típico de Marlene; Falling in Love again, em deliciosa releitura, funciona muito bem. Lili Marlene é um momento fortíssimo; na interpretação de Sylvia cabem, com sutileza e drama, todos os conflitos interiores da estrela e da mulher, naquele período de sua vida. Ne me quitte pas é uma boa e comovente surpresa, enquanto Ich bin die fesche Lola e Just a Gigolo são mais Marlene do que nunca. Sem que Sylvia deixe, em momento algum, de ser Sylvia.


Sylvia Bandeira como Marlene Dietrich
Foto: Antonio Guerreiro (divulgação)


Luar do Sertão, que Marlene Dietrich fez questão de interpretar em sua apresentação no Copacabana Palace, é um episódio que, felizmente, não foi esquecido no roteiro. E Sylvia não tem medo de arriscar o sotaque de Marlene, as pausas, toda uma estética que acompanha o gesto, ao reproduzir o mágico instante em que a estrela tem a delicadeza de falar à plateia em sua própria língua, ainda que só um pouquinho.

No palco, tudo é econômico sem ser contido, e por isso transborda: a presença da luz certa, a qualidade da música (que pontua sem invadir), os incríveis figurinos. Vale a menção a um elenco muito equilibrado. José Mauro Brant consegue ser o mais comum dos comuns como o entregador Albert – desajeitado, desconfiado, ingênuo. É de uma verdade cativante. E sai-se muito bem nos vários papéis alternativos, cantando e dançando à luz de uma época. Silvio Ferrari é como se fosse a face do bom e velho teatro: encarrega-se com sucesso de várias encarnações quase simultâneas e é convincente na maior parte delas. Talvez menos como Maurice Chevalier, mas mesmo assim comove quando enuncia detalhes quase etéreos, esquecidos no fundo da memória, da linguagem corporal do velho chansonnier. E canta! Aliás, um charme especial do espetáculo é utilizar o canto à moda antiga, ou seja, teatralmente, a serviço do drama. Com tudo o que tem de benfazeja para o nosso teatro, a avalanche de musicais chega a tornar-se cansativa por fazer justamente o contrário: o drama é que, muitas vezes, serve aos trinados e às exibições de vozes portentosas. Na sala de estar de Marlene Dietrich, nos magníficos flashbacks que comanda com sua vigorosa narrativa (pontos sucessivos, aliás, para o texto primoroso de Aimar Labaki), temos teatro o tempo inteiro. Sem que qualquer dos números musicais, mesmo os mais comoventes, se sobrepuje à dramaturgia.

A excelente Márcia Cabral, que hoje atende por Marciah Luna Cabral, é uma peça importante desse conjunto. Nos momentos em que é simplesmente atriz – como a filha Maria, a irmã Elisabeth, a mãe Wilhelmina, a ama Tamara – sua intensidade é marcante, afinada com o tom quase minimalista da direção. Apesar de sua bela voz e de sua versatilidade musical, tão essencial ao conjunto do espetáculo, faltou Piaf em sua Piaf. Mas aí, justiça seja feita: ainda que por um instante apenas, é mesmo difícil ser Piaf depois de Bibi Ferreira...

Dentro do extremo bom-gosto que reveste toda a produção, os figurinos se pronunciam com bastante veemência. As roupas de Marlene falam – acariciam, sussurram, convidam, impõem, dirigem movimentos, são emblemas de toda uma época. É bonito ver as calças bem cortadas, os coletes, os chapéus, até mesmo as peles (afinal, os tempos eram outros mesmo). A farda do Exército norte-americano quase “protagoniza” o momento Lili Marlene do espetáculo. Como tirar os olhos dela? E o vestido da apresentação no Copacabana Palace, acrescido da capa que adorna o grand finale, é uma evocação do que se pode chamar de verdadeiro glamour. Aliás, isso me faz lembrar a deliciosa discussão de Marlene e Albert a respeito de Madonna. E tenho de concordar com a estrela: pose não tem, absolutamente, nada a ver com classe. E muito menos com glamour! É, os tempos de fato são outros. E as estrelas também...

Marcelo Marques veste com habilidade os mil e um personagens em que se reveza o elenco. Nisso, também, está o tom discreto, despojado, real, que envolve todo o espetáculo. Essa escolha é, a meu ver, fundamental para que a essência de Marlene fosse tão bem delineada. Lembro que, na leitura da autobiografia, eu me detive muito nas partes em que ela se referia a Sternberg e no que aprendera com ele sobre a luz. Não admira que o diretor William Pereira tenha se espelhado nisso. Afinal, o que a gente vê não é sempre a luz?

E o que a gente ouve, em “Marlene Dietrich – As pernas do século”? Ambientação musical de primeira, totalmente sintonizada com a direção. Os excelentes músicos Roberto Bahal, que além de atuar ao piano assina a direção musical e os arranjos, Luciano Corrêa (violoncelo) e Vinícius Carvalho (sopros). A gente os ouve com imenso prazer, mas não chega a vê-los. Está aí mais um toque de mestre: a música faz parte da cena, os músicos do cenário. Mais um velho segredo do teatro, muito bem materializado pela direção. Isso para falar apenas da música incidental. O excelente roteiro musical merece um aplauso especial.

Senhoras e senhores, Marlene Dietrich! Por favor, desliguem o tempo presente e ocupem suas cabines para viver, em duas horas, os melhores 90 anos que já lhes foi dado viver!


sexta-feira, setembro 24, 2010

Muito além do alto da rua

Foto: Divulgação

No espaço coreografado do silêncio, um ritmo quase respiratório se revela na entrada progressiva de bailarinos em excelente forma, com a disciplina das aulas saltando à vista.

O Grupo Impacto, da cidade de Viçosa, começa com firmeza a impactar (não posso resistir!) os olhares e sentidos curiosos de sua primeira platéia no Rio de Janeiro.

Tenho a sorte de fazer parte dela. De ser, ainda sem o saber, testemunha de um momento muito importante para a dança no Brasil.

A história de Adriano Luis Ramos, Alex Luis Ramos, Cleison Lana, Jean Carlo do Nascimento, Luis Filipe Claudino, Rafael Gregório, Rodrigo Abranches e Wellington Júlio poderia ser igual a tantas outras, belas e essenciais num país tão desigual como o nosso: buscar a arte como caminho para transcender justamente a desigualdade e sua prima-irmã, a violência. Mas é isso apenas em parte; no que sobrenada. A história que começa a ser contada a partir de No alto da rua, espetáculo concebido e coreografado pelo emblemático Mário Nascimento para o grupo, que também participa da criação, é a da arte mais primal e verdadeira, aquela que sai dos poros e emoldura um sério trabalho de criação, pesquisa, competência e talento. E que transita muito além de qualquer conceito de projeto social, por mais relevante que seja.

Os movimentos do que se ensaia como dança de rua, hip-hop e estilos correlatos, são, na face da verdade, ballet - dança pura e torneada, com leveza e técnica, com apuro, elegância. Um a um, em anárquica sincronia, os oito bailarinos penetram o silêncio sem medo ou exageros. Há um profundo senso de medida na paixão com que executam o que Mário criou em cima de seus corpos tão hábeis em descortinar cada movimento sabendo exatamente onde vai dar, onde falsamente se interrompe, onde recomeça, para onde evolui

Em meio à densidade provocada pelo larguíssimo e sincopado silêncio, que conduz a uma suave mixagem para a porção Metallica da trilha, o movimento começa a edificar o enredo sem máscara que circula nas ruas de tantas cidades brasileiras. Reconhecemos o abandono, o desamparo, o medo, sintomas rotineiros no dia a dia de muita gente que mora onde, aparentemente, não mora ninguém. A perfeição da coreografia é proporcional à resposta dos bailarinos, que são maduros e consistentes. Nada acontece por acaso, nenhum gesto é perdido. Mesmo o constante enlear, enroscar, agregar e desagregar do desenho de conjunto é uma aliança essencial dos corpos contra os perigos insondáveis da noite. Tudo brota do movimento – as primeiras divisões, disputas, isolamentos, associações. Estabelece-se, pouco a pouco, a regra não escrita do mando das ruas, marcada por histórias de submissão e mais abandono, demarcação de território, sacrifício, crueldade.

Com o uso de um único tipo de recurso cênico – pequenos caixotes retangulares – o grupo monta uma infinidade de cenas que refletem o dilema diário que muitos jovens são obrigados a enfrentar: disputas de poder e controle sobre áreas dominadas, trocas de favores, risco de vida, a violência como um hábito, banalizada e, no entanto, absurdamente real.

A ocupação do palco é primorosa: desenhos vigorosos, ágeis, rítmicos. Às vezes sufocantes, porém reais até a medula; às vezes nem a gente, na plateia, consegue respirar direito. A aflição se antecipa e vem dosada, contida, em pequenas e decisivas golfadas. Os movimentos são belos, líricos até, executados com técnica; são, sobretudo, harmônicos. A crueza dos sentimentos partilhados já parece suficiente. Desnecessário agredir a estética coreográfica para expressá-la.

Surpreendente o uso dos temas dos Racionais pelo coreógrafo: a voz de quem rompe o círculo de medo e impotência sobe do palco para a plateia, como a simbolizar que eu posso ser você, assim como você pode ser eu. Os dois raps falam a língua dessa galera, do mundo que os recebeu e onde se reconhecem, mas não sem esperança, sem luta, sem ideais; muito ao contrário, com tudo isso junto – e encarado de frente, com força de mudar.

Vejo os bailarinos que se alternam entre a boca de cena e o vão central ascendente da plateia, entre solos e conjuntos. E penso em MV Bill. Que também sonhava com uma realidade nova e conseguiu construí-la. Aliás, não só isso: conseguiu compartilhá-la e buscar mudanças. Bill sempre fala à alma porque, em franqueza absoluta e até nos momentos de aparente descrença, exala esperança e responsabilidade. Esperança nas pessoas e responsabilidade por levar a mensagem certa e ter a atitude certa aonde quer que vá.

Eu poderia passar a noite inteira aqui discutindo minúcias técnicas – e todas elas seriam pontos a favor do espetáculo. Os figurinos do próprio Mário Nascimento são factuais, sinceros, convincentes. A trilha sonora, primorosa e perfeitamente ajustada. A luz, impecável, cria o momento presente e todos os outros tempos, em modo de flashback, memórias, reflexões, sonhos. Tudo isso é tecido imperceptivelmente junto com a coreografia, a trilha sonora, os sentimentos expostos visceral e ternamente. E que nos contagiam com uma força enorme.

O ballet de Mário Nascimento, criado para esses virtuosos bailarinos que apenas utilizam como “disfarce” a estética da dança de rua, é um acontecimento no cenário da dança brasileira. É uma semente forte se rompendo no meio da terra. Um rumor que se propaga com muita velocidade. Em breve tempo, vai ser uma gritaria inequívoca a favor do belo – e da felicidade a que todo artista tem direito: a felicidade de fazer, da sua arte, salvação para quem dança, para quem assiste e até para quem apenas ouve falar dela.

No alto da rua é um espetáculo para não se perder.

Corram, por favor, corram ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro antes que o domingo se acabe!

segunda-feira, julho 05, 2010

Quero falar de uma coisa...


Foto: Abstract flowers 1 by Float

Meu coração de estudante desperta, com disposição, de profundas e variadas ausências. E acorda as palavras deste blog, que parecia estar de luto por Mercedes Sosa até hoje, mas não, não estava. Entre um grande amor e uma viagem, fotografias irremediavelmente engolidas por um backup entregue na portaria e que jamais chegou ao dono, pressões da sobrevivência, desenganos, crises, sonhos e projetos, aporto novamente aqui. Se terei sempre palavras, não sei dizer ainda. Mas prefiro acreditar em um post atrás do outro, sem rígidas imposições a mim mesma. Que escrever salva, para mim é mais que um fato científico. O que espero é ter vontade de me salvar todos os dias aqui, com pequenas construções em forma de ideias, poesia, argamassa. Com o coração cheio de empenho e revolta, como diria Lluís Llach, sem jamais desistir.
Hoje, cinco de julho, às dez da manhã, eu já amargava três horas e quarenta de pé, na fila de compra dos ingressos da Festa Literária Internacional de Paraty - que, em anos de copa do mundo, muda-se do início de julho para o início de agosto. Para amenizar a dor nas pernas e nos calcanhares, tremiliques compassados de pernas, semelhantes aos que fazem os jogadores de futebol para se aquecer, já em campo, pouco antes da partida começar. Particularmente penosa, a compra este ano. Madruga-se numa fila e esgotam-se muitos ingressos antes da quarta pessoa (que era eu) chegar ao guichê. Reconheço que a compra de ingressos para a Flip é um problema insolúvel. Ou se é patrono, com o desembolso de somas elevadas, ou é isso. Nenhum fornecedor novo (a organização troca todo ano) consegue solucionar o problema de haver apenas 850 lugares na Sala dos Autores, onde nós, mortais, temos a chance de ver de perto muitos daqueles que preenchem as páginas dos livros da nossa vida. Mas há um prazer secreto em constatar que, em terras tupiniquins, os ingressos para um evento literário desaparecem nos primeiros dias da venda. Só queria não sofrer tanto para tentar comprá-los...
Tempo firme, céu azul, sol e mar, névoa seca, temperatura amena. Inverno bom, discreto. Tem gente que até vai à praia... limito-me a contemplar e escutar as ondas a segredarem espuma. E ver o meu velho Carlos (Drummond) eternamente sentado, encolhidinho como era o seu jeito, num banquinho do Posto Seis, fascinando todo mundo.
Ontem, a visita habitual de Ricardo, do blog Tertúlias, via skype, no meio da tarde. Ricardo representa o que amo na internet: a possibilidade de grandes encontros ou reencontros, a ponte entre as ausências.
Hoje, um tênue retorno a este cenário de palavras.
Que ele se intensifique a cada dia é o meu mais ávido desejo.