sábado, outubro 30, 2010

Comunicar o desejo

O que nos move, da Laso Cia. de Dança
(Foto: divulgação)


Gosto de chegar ao teatro o mais vazia possível, quando vou assistir a um espetáculo. Muita informação cria expectativa – e muita expectativa fecha um pouco os olhos da gente para o que, de fato, podemos usufruir do que vai se desenrolar no palco.

Uma querida amiga, grande bailarina, me diz que sempre teve por hábito gastar todo o excesso de energia antes de entrar em cena e deixar no corpo só a quantidade necessária para interpretar seus papéis. Creio que essas duas reações, a minha e a dela, são parecidas: são duas formas de transformar a arte em alimento.

Eu, plateia, me alimento do que vejo e sinto, da troca com o que acontece no palco e da forma como isso me atinge. Então tratei de não me antecipar, quando fui assistir a O que nos move, da Laso Cia. de Dança, no teatro do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Li apenas o que veio escrito no convite.

O espetáculo, contudo, começou pela explicação: um texto, lido na abertura, dava literalmente o passo a passo para o espectador acompanhar a cena. Lembrei-me da mesma querida amiga e de sua sabedoria: em matéria de dança, se precisa explicar, é bom ter cuidado... Mas não posso julgar ainda, preciso ver primeiro.

A primeira impressão cênica é forte: vídeos velozmente projetados numa tela improvisada, à esquerda do palco, trilha refinada e o contraponto de um único ser bailarino, um tanto mal iluminado e praticamente impossível de identificar, sob um casaco com capuz. Ao lado, uma enorme estrutura cheia de roupas penduradas, presas umas às outras.

Logo sai de cena o casaco, que na verdade escondia uma bailarina, e aparecem os outros integrantes do elenco. Caminham pelo palco, tocam-se e visitam as roupas ao fundo; entram e saem delas em movimentos delicados, como se trocassem de pele. Esse vestir de uma manga, provar uma saia, arrebatar uma calça, tirar de novo e buscar outra peça, tudo embalado pela sempre impecável Dalva de Oliveira, na canção Lembrança, acontece num espaço sensível de memória, como se o ato de vestir/desvestir falasse, na verdade, de questões da alma, momentos de decisão, atitudes importantes a serem tomadas.

Já gosto do ritmo, sinto firmeza; são atores desenvoltos, têm química, são articulados. Há também toda uma relação entre o colorido das roupas penduradas, das roupas do corpo e a iluminação; remetem a um sépia guardado em gavetas, como um passado que está de visita.

O conjunto é carismático e o espetáculo se reveste de um bom-gosto básico, prende a atenção. Ainda assim, sou assaltada por uma velha e recorrente questão: onde é que está a dança, afinal?

Quem sou eu para tentar saber o que é dança, o que significa dança, nesse mundo repleto de paradigmas quebrados? No meu tempo, no reinado absoluto de Klauss Vianna e seu vasto talento, o que vejo agora neste palco se chamava expressão corporal. Era uma grande novidade, que ajudava imensamente os atores a descobrirem o movimento e a expandir seu trabalho interpretativo.

O adjetivo “contemporâneo” parece caber em praticamente qualquer manifestação de arte que aconteça sem regras específicas, a dança inclusive. Do clássico fez-se o neoclássico, deste a dança moderna, nomeada em contraposição a um conceito de antigo, ortodoxo. E desta nasceu o que se convenciona chamar, hoje, de dança contemporânea.

A desconstrução do movimento tornou-se quase que obrigatória; só esqueceram de que, para desconstruir, é preciso primeiro aprender a construir. A aula clássica, ainda fundamental para moldar a “limpeza” dos movimentos, foi relegada a um segundo plano, quando não abandonada.

Mas o que essa longa sessão sobre o movimento tem a ver com o espetáculo O que nos move?

Acho que tem muito. A Laso Cia. de Dança é uma companhia jovem, potente e criativa, bem dirigida e que consegue comunicar-se com a plateia, transmitir a mensagem, criar clima. A trilha sonora é brilhante, com destaque para a bela canção Le vent nous portera, do grupo francês Noir Desir, e pela música incidental construída pelo diretor Carlos Laerte, junto com o DJ Marcão.

Mas sinto falta de dança – de ver movimentos que, mesmo em meio a uma eventual crueza, podem e devem ser executados com beleza e refinamento. Nesse particular, acho que ainda há um bom espaço para avançar. O momento que mais se aproximou de uma coreografia, a meu ver, foi uma espécie de pas-de-deux elástico entre o bailarino Hugo Gonçalves e as mangas quilométricas do conjunto lilás vestido por Carolina Saraiva. A dupla construiu desenhos quase modernistas no palco, tirando partido justamente das possibilidades do figurino da bailarina.

Mas a força criativa do espetáculo repousa também em outros pilares. O uso de imagens tomadas na hora e projetadas na tela, combinado à leitura de poemas – principalmente por Maria da Lapa – e mesmo a um trecho de Lembrança, cantado teatralmente por Carolina Saraiva, é muito eficiente cenicamente. E os momentos de dilema, conflito, carinho, solidariedade, alternam-se com muito ritmo e clareza, ao longo do espetáculo. Aliás, a leitura inicial, a meu ver, é perfeitamente dispensável, diante da expressividade e da capacidade de comunicação do elenco.

A Laso Cia. de Dança é uma companhia na trilha da maturidade. Tenho certeza de que a percepção de algumas necessidades, como desenvolver melhor os caminhos coreográficos e ampliar a preparação dos bailarinos, virá a seu tempo. O corpo criativo do grupo – e isso inclui diretor, atores-bailarinos, iluminador, figurinista, produção etc. – reúne excelentes condições para aperfeiçoar, ajustar e reformular o que for preciso.

O que nos move é, em seu saldo geral, um espetáculo cativante e sobretudo sincero, feito mesmo com empenho e vontade de acertar. Daqui pra frente, com certeza, só pode ficar melhor do que já é.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Sob a luz de Marlene

Marlene Dietrich - Foto: coleção particular


Há alguns anos, um amigo me deu de presente a autobiografia de Marlene Dietrich. Até hoje não sei dizer se ele teve alguma razão especial para isto. O que sei é que meu vivo interesse pela mítica figura – que mal conhecia, além de alguns filmes – transformou-se, ao longo daquelas duzentas e poucas páginas, numa absurda e inesperada intimidade. Bem parecida, aliás, como a que experimenta o personagem Albert do espetáculo “Marlene Dietrich: as pernas do século”, após horas e horas de uma conversa surpreendente com a diva, a meio caminho entre o fascínio e a vertigem, entre o susto e o encantamento. Aliás, a boa e simples ideia de um diálogo perfeitamente possível entre duas pessoas “comuns” à sua maneira – a estrela, com sua profunda lucidez e prodigiosa memória, e o assustado e confuso entregador – funciona muito bem para dar o tom da sensibilidade que perpassa todo o espetáculo.

Sylvia Bandeira, na pele de Marlene Dietrich, fez-me sentir como se captasse no ar o momento exato da síntese: aquele momento definitivo no qual as experiências e vivências humanas e artísticas de uma pessoa se fundem e tudo, de repente, se encaixa – como se os elementos orgânicos, mentais, físicos, artísticos e intelectuais que compõem aquele ser tivessem esperado a vida inteira para, enfim, revelar-se em toda sua beleza, essência e densidade.

Estar linda no palco é apenas o óbvio. Além e acima disto está a luz – que afinal, segundo rezam os cânones do inventor de Marlene Dietrich, Josef von Sternberg, deve vir sempre de cima. E a luz é de Sylvia, em plena maturidade artística, com uma franqueza na incorporação da personagem que vai muito além da postura, do gestual e mesmo do timbre vocal. Com toda a disciplina e estudo que transparecem em sua atuação, ela é verdadeiramente Sylvia enquanto Marlene, e Marlene na pele de Sylvia. A voz, afinada e bem ajustada, abraça sem imitar o estilo e a teatralidade despojada de Marlene Dietrich. E emociona de verdade em várias interpretações. Johnny é o primeiro susto, no mais perfeito clima cabaré, tão típico de Marlene; Falling in Love again, em deliciosa releitura, funciona muito bem. Lili Marlene é um momento fortíssimo; na interpretação de Sylvia cabem, com sutileza e drama, todos os conflitos interiores da estrela e da mulher, naquele período de sua vida. Ne me quitte pas é uma boa e comovente surpresa, enquanto Ich bin die fesche Lola e Just a Gigolo são mais Marlene do que nunca. Sem que Sylvia deixe, em momento algum, de ser Sylvia.


Sylvia Bandeira como Marlene Dietrich
Foto: Antonio Guerreiro (divulgação)


Luar do Sertão, que Marlene Dietrich fez questão de interpretar em sua apresentação no Copacabana Palace, é um episódio que, felizmente, não foi esquecido no roteiro. E Sylvia não tem medo de arriscar o sotaque de Marlene, as pausas, toda uma estética que acompanha o gesto, ao reproduzir o mágico instante em que a estrela tem a delicadeza de falar à plateia em sua própria língua, ainda que só um pouquinho.

No palco, tudo é econômico sem ser contido, e por isso transborda: a presença da luz certa, a qualidade da música (que pontua sem invadir), os incríveis figurinos. Vale a menção a um elenco muito equilibrado. José Mauro Brant consegue ser o mais comum dos comuns como o entregador Albert – desajeitado, desconfiado, ingênuo. É de uma verdade cativante. E sai-se muito bem nos vários papéis alternativos, cantando e dançando à luz de uma época. Silvio Ferrari é como se fosse a face do bom e velho teatro: encarrega-se com sucesso de várias encarnações quase simultâneas e é convincente na maior parte delas. Talvez menos como Maurice Chevalier, mas mesmo assim comove quando enuncia detalhes quase etéreos, esquecidos no fundo da memória, da linguagem corporal do velho chansonnier. E canta! Aliás, um charme especial do espetáculo é utilizar o canto à moda antiga, ou seja, teatralmente, a serviço do drama. Com tudo o que tem de benfazeja para o nosso teatro, a avalanche de musicais chega a tornar-se cansativa por fazer justamente o contrário: o drama é que, muitas vezes, serve aos trinados e às exibições de vozes portentosas. Na sala de estar de Marlene Dietrich, nos magníficos flashbacks que comanda com sua vigorosa narrativa (pontos sucessivos, aliás, para o texto primoroso de Aimar Labaki), temos teatro o tempo inteiro. Sem que qualquer dos números musicais, mesmo os mais comoventes, se sobrepuje à dramaturgia.

A excelente Márcia Cabral, que hoje atende por Marciah Luna Cabral, é uma peça importante desse conjunto. Nos momentos em que é simplesmente atriz – como a filha Maria, a irmã Elisabeth, a mãe Wilhelmina, a ama Tamara – sua intensidade é marcante, afinada com o tom quase minimalista da direção. Apesar de sua bela voz e de sua versatilidade musical, tão essencial ao conjunto do espetáculo, faltou Piaf em sua Piaf. Mas aí, justiça seja feita: ainda que por um instante apenas, é mesmo difícil ser Piaf depois de Bibi Ferreira...

Dentro do extremo bom-gosto que reveste toda a produção, os figurinos se pronunciam com bastante veemência. As roupas de Marlene falam – acariciam, sussurram, convidam, impõem, dirigem movimentos, são emblemas de toda uma época. É bonito ver as calças bem cortadas, os coletes, os chapéus, até mesmo as peles (afinal, os tempos eram outros mesmo). A farda do Exército norte-americano quase “protagoniza” o momento Lili Marlene do espetáculo. Como tirar os olhos dela? E o vestido da apresentação no Copacabana Palace, acrescido da capa que adorna o grand finale, é uma evocação do que se pode chamar de verdadeiro glamour. Aliás, isso me faz lembrar a deliciosa discussão de Marlene e Albert a respeito de Madonna. E tenho de concordar com a estrela: pose não tem, absolutamente, nada a ver com classe. E muito menos com glamour! É, os tempos de fato são outros. E as estrelas também...

Marcelo Marques veste com habilidade os mil e um personagens em que se reveza o elenco. Nisso, também, está o tom discreto, despojado, real, que envolve todo o espetáculo. Essa escolha é, a meu ver, fundamental para que a essência de Marlene fosse tão bem delineada. Lembro que, na leitura da autobiografia, eu me detive muito nas partes em que ela se referia a Sternberg e no que aprendera com ele sobre a luz. Não admira que o diretor William Pereira tenha se espelhado nisso. Afinal, o que a gente vê não é sempre a luz?

E o que a gente ouve, em “Marlene Dietrich – As pernas do século”? Ambientação musical de primeira, totalmente sintonizada com a direção. Os excelentes músicos Roberto Bahal, que além de atuar ao piano assina a direção musical e os arranjos, Luciano Corrêa (violoncelo) e Vinícius Carvalho (sopros). A gente os ouve com imenso prazer, mas não chega a vê-los. Está aí mais um toque de mestre: a música faz parte da cena, os músicos do cenário. Mais um velho segredo do teatro, muito bem materializado pela direção. Isso para falar apenas da música incidental. O excelente roteiro musical merece um aplauso especial.

Senhoras e senhores, Marlene Dietrich! Por favor, desliguem o tempo presente e ocupem suas cabines para viver, em duas horas, os melhores 90 anos que já lhes foi dado viver!