domingo, outubro 23, 2011

Senhora do engenho das palavras



Foto: Divulgação


Se Bethânia e palavra não são sinônimos, é como se fossem. Taí uma coisa que nunca tinha formulado na minha cabeça até vê-la, na semana passada, atuar numa leitura – espécie de “quarto ato” que coroa toda uma vida de pura intimidade com a vocalização da nossa amada língua-pátria. Só então tudo ficou transparente dentro de mim: foi com ela que aprendi, só em sentir, a verdade profunda por trás de cada sílaba portuguesa que se pronuncia.

A leitura “Bethânia e as palavras”, realizada no Teatro Sesc Ginástico em comemoração ao relançamento-resgate do livro “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”, de Reynaldo Jardim, confiscado pela censura da década de 1960, foi aberta com um vídeo que começou batendo forte. Além de comoventes depoimentos do autor, falecido em fevereiro deste ano, lá estava Bethânia cantando Carcará, no lendário show Opinião. Arre que eu nunca tinha visto aquilo! De saber, sabia só de fotos. Vejo que já era, então, um animal armando voo, com a coreografia da guerra diária de sobreviver, perfil e olhos em riste, a natureza descompassadamente contida.

Em 64 eu tinha oito anos, morava no interior, viajava pouco e lia muito. Aprendia a cor sombria dos tempos entre conversas entreouvidas, soturnas. Bethânia me chegou bem depois, mas o susto não foi menor. Com os discos Drama e Terceiro Ato e o seu exclusivo entrelaçar de músicas, letras e poemas, descobri que só ela sabia dizer as coisas. Sim, e de um jeito tão próprio que seria inútil tentar imitar. Quando Bethânia diz “minha mãe”, o mãe-ser é outro, não esse que a gente fala com a mãe da gente, nem o que se lê ou se escuta em qualquer outro lugar. Se ela diz "beleza", a dita fica mais bela. Ao falar “Ele é casado...”, Bethânia desenha e sublinha e reinventa a palavra como se ela possuísse um dicionário sonoro só seu, independente, e que nos desse de presente sentidos novos em cofrinhos para guardar.

Com Bethânia, as palavras passaram a acordar dentro de mim diferentes. Fez das canções de Dalva de Oliveira novos hinos, ofereceu segredos que alguma coisa do fundo de dentro sabia interpretar, nem eu sei como. Desde então, perdi no tempo o contato com o que as palavras eram antes dela chegar.

Esclareço que não sou fã de carteirinha. É inútil me perguntar em que ano Bethânia gravou tal disco ou cantou em tal lugar. Deixo isto para aqueles que a têm acompanhado mais de perto, ao longo dos anos. Mas tenho cultivado, vida afora, a sua presença – que vai muito além dos sete buracos da minha cabeça. Bethânia é, e nada mais é preciso. Nesse cultivo, cada ínfimo detalhe dos poucos shows que assisti conta muito. Ainda peguei o último no Teatro da Praia, paralisada às raias do êxtase. E alguns no Canecão, também. Na Flip 2009, em meio à inesquecível homenagem a Jorge Amado, caiu a ficha diante da majestosa figura de branco, cabelos fartos abaixo da cintura, as mãos num meneio que só ela é capaz de fazer, os olhos de estrelas. Consagração é isto, senti e guardei. O povo todo ali rendido, fechado com ela, como se não houvesse nem ontem e nem amanhã.

E assim, Bethânia e Caetano têm sido dois lados da mesma viagem, desde sempre – ela luz, ele cometa, montado na proa do futuro. Lembro, em particular, de um momento lindíssimo do documentário Pedrinha de Aruanda: Bethânia, Caetano e sua mãe Dona Canô, musa de todos nós, cantando juntos, sentados no quintal da casa da família, em Santo Amaro da Purificação, numa linda noite de luar. Pura delicadeza, coisa de famílias antigas, com raízes de jaqueira. Encantamento incompatível com a correria da maioria dos dias, mas que fica no coração da gente, refrescando como o sereno da noite.

(Rezam as lendas de minha família que um irmão de minha avó – Affonso Guimarães, que não cheguei a conhecer - deixou a tímida Pinheiral, no interior do estado do Rio, para trabalhar em Santo Amaro, na Bahia. E lá, teria feito a corte à jovem Canô, com intenção de noivar. Mas o destino não quis e acabou escrevendo certo: que filhos outros, senão estes nascidos de Seu Zezinho e de Dona Canô, poderiam ser tão especiais e únicos para a música do Brasil e para a alma dos brasileiros?)

Vejo a serena elegância de Bethânia neste recital quase camerístico, secundado por percussão e cordas. À leitura de poemas, acrescenta histórias íntimas, brinca e nos envolve como se estivéssemos todos sentados em torno de uma grande mesa, possivelmente na copa de uma vasta casa, tomando café com beiju, inhame, farinha de milho. Os pés de menina de areia continuam a voar nus pelo palco, vai lá, vem cá, e o corpo junto, onda e reverência, aceno e ventania. Se um gesto silencia até a respiração das pessoas, outro convida a cantar. “Ô cirandeiro, cirandeiro ô, a pedra do teu anel brilha mais do que o sol...” O coro é tímido, quase moldura para a voz forte-segura que nos acostumamos a receber. Mas se faz presente como uma certeza de que estaremos aqui, como alguém cantando ao longe, longe, para Bethânia saber que sua voz e presença, que vêm do coração, traduzirão para sempre, dentro de nós, toda a beleza da Natureza, onde não há pecado, nem perdão...

terça-feira, julho 12, 2011

Minhas Flips


Flip de casa, 2011

Desde 2004 que não perco uma só Flip. O marco zero da aventura literária paratiense, a Flip 2003, me escapou por mera ignorância... A dor de cotovelo explodiu numa matéria do RJTV, que selou meu destino de devoção a esta época que reputo sagrada do ano.
Os sintomas começam meses antes, e justificam-se: toda uma arquitetura para garantir hospedagem, paciência próxima do infinito para ter sucesso na árdua compra de ingressos, passagens... Tudo feito com ansiedade e gosto igualmente absurdos.
Flip 2010, malas prontas e a tradição desfeita: não deu para ir. E adianto que o meu coração literário só não se despedaçou por causa da transmissão direta. Inaugurei a Flip de casa, processo suspirante e quase tão intenso quanto o de sentir o cheiro familiar, estalando de novo, da Tenda dos Autores, o segundo lar que adoto ano após ano com fervor e alegria renovados. Flip em dose integral, diante da microtela no meio do computador, com direito a lágrimas, aplausos, gritos e risos. Penso nisso com uma sensação de quem tem as chaves de um reino, toda vez que ouço um convidado repudiar a tecnologia... Sem ela, eu teria colecionado incontáveis buracos no coração flipiano. Ferreira Gullar no ano passado, por exemplo: uma vez perdido, seria difícil de curar.
Este ano, temo que não resistiria se não estivesse imaterialmente "presente" à leitura do texto de Valter Hugo Mãe, à performance de James Ellroy, à doçura quase permeável de Antônio Cândido, à saborosa intimidade entre Ignácio de Loyola Brandão e Contardo Calligaris.
A Flip de perto, que conheci ininterruptamente de 2004 a 2009, fez alterações definitivas em meu metabolismo cultural. Trouxe-me David Grossman e, com ele, a certeza de que a humanidade tem jeito. Miguel de Sousa Tavares e o sentimento do mundo em um dos poemas de sua mãe, Sofia de Mello Breyner Andresen, que acabara de falecer. Orham Pamuk e sua inspiração nas capas de livros. Colm Tóibin e os limões-de-cheiro exatamente iguais aos comprados por Leopold Bloom, na Dublin de Joyce. Ariano Suassuna e sua régia beleza. Gonçalo M. Tavares e a poética de subverter a lógica. Adélia Prado, Ondjaaki... Ver todo o efetivo policial de Paraty mobilizado para proteger um Chico Buarque amado ad aeternum... E, claro, a feliz dose dupla de Salman Rushdie, que não vi comendo uma queijadinha, como sugeriu o Veríssimo numa crônica, mas que pilhei numa alegria inefável diante das mais brasileiras sonoridades.
Se a Flip de casa protege contra os quase inevitáveis tombos de pedra rolada - um dos quais, de dolorosa e intumescida lembrança, me valeu o acesso à cobiçada fila preferencial (não sem o diário e distraído questionamento de uma atendente que adorava ver meu atestado médico) -, ela nos rouba os encontros, cruzamentos de ideias perdidas em esquinas do tempo. Aconteceu com José Luiz Peixoto e rendeu conversa, entrevista pro blog, boas lembranças. Aconteceu sobretudo com David Grossman, o momento mágico na pontezinha em que aprendi a palavra Hadag-Nahash, a senha infalível para gravar o hap que o escritor compôs com o grupo israelense de mesmo nome e que fechou, da forma mais poética possível, a mesa Livro de Cabeceira em 2005 - para mim, o ano da Flip dos Sonhos.
Com a alma temporariamente saciada pelas sensibilidades da Flip 2011, confessional como nenhuma outra, começo a falar das minhas Flips. E também daquela que ainda não toquei e pela qual anseio, um dia, quem sabe: a Flip de dentro.
Continuemos, então.

quinta-feira, junho 16, 2011

Muito além de um fio de música

Um violinista no telhado, em cartaz no Oi Casa Grande
Foto: Guga Melgar (Divulgação)

Um tom plangente corta o frio da madrugada; ao longe, e lá do alto, vem a música cujo intérprete desafia as inclinações quase impossíveis dos telhados simples de Anatevka, acocorados nas frias encostas de uma Rússia enclavada no tempo. A música é triste, ainda que bela; e, em sua dolência, faz com que todos se sintam em paz.

É assim, falando dos violinistas que se equilibram nas alturas, que o leiteiro Tevye, um aldeão pai de cinco filhas, começa a delimitar os horizontes da vida em sua comunidade, emoldurado pelos acordes que nos ferem com doçura a alma. É o começo de Um violinista no telhado, o musical de 1965 criado por Jerry Bock (música), Sheldon Harnick (letras), Joseph Stein (libreto) e Jerome Robbins (coreografia original) - que ganha, nos palcos brasileiros, uma versão que, sem qualquer audácia de nossa parte, pode ser declarada definitiva.

Animada por uma história de amor de quase 40 anos com esta obra, comecei a me contorcer de emoção assim que soube que os imbatíveis Charles Möeller e Cláudio Botelho iam montá-la. Sou uma confessa “cria” do filme homônimo de Norman Jewison, de 1971, ao qual fui apresentada por um velho e querido amigo, Jack Micaleff, um engenheiro da Du Pont norte-americana que conheci na fábrica onde trabalhava na época. Quanto mais Jack me contava, mais eu curtia. Era um tempo em que os filmes americanos demoravam a chegar aqui, mas esperei com toda paciência até o dia em que pude assisti-lo, em Volta Redonda, na companhia de meu pai.

Foi um delírio inimaginável. O encontro com o magnífico Topol, em todo seu esplendor como Tevye, foi marcante na minha alma – assim como a música, que nunca mais me deixou. Pouco tempo depois, em meus regulares garimpos às lojas de discos (sim, senhor, os bons e velhos long-plays de 33 1/3 rotações), encontrei e arrematei uma edição dupla da trilha sonora original.

Quando finalmente entrei no Teatro Oi Casa Grande para assistir à peça, no último dia 11 – o que, do ponto de vista da minha monumental expectativa, pareceu ter demorado alguns séculos -, foi para viver esse grande amor de uma forma totalmente nova e avassaladora. Todas as recordações que serviram de ponte até aquele momento foram esmaecidas pelo vigor artístico, pela beleza e pela força incrível do nosso primoroso elenco, pela cenografia, pela performance musical perfeita. Não deu tempo nem para respirar; tudo acontecia ali na minha frente - e eu, sem acreditar, sentia-me no palco, uma figurante amorosa a pulsar no ritmo da cena, parte e personagem de um universo tão familiar, agora materializado com inesgotável magia.

Primeiro, José Mayer. Que custei a “ver” na pele de Tevye, devo confessar, mas a quem não conseguiria resistir nem por um instante, desde a primeira fala. E que demoliu completamente o Topol que vivia em mim com sua ternura e drama, com a inocência com que enuncia as contradições e o bom-humor do simples e humano leiteiro Tevye, que fala com Deus com a naturalidade típica dos puros de coração. O Tevye de José Mayer emociona, envolve, é engraçado (aliás, muito engraçado!) ... Há que tomar fôlego e respirar fundo para conseguir lidar com todo esse acervo de surpresas, todas gratíssimas, contidas num único José Mayer. Talvez Tevye seja de fato – como o próprio ator disse, em um dos making-ofs disponíveis no YouTube – o melhor papel da sua vida. Reconhecer e desvendar essas nuances em um grande ator brasileiro, tão intenso e original na encarnação de um personagem clássico, foi uma emoção enorme.

Acho que se alguém se dispuser a procurar, com uma lupa bem grande, um defeitinho – por menor que seja! – na produção de Um violinista no telhado, vai se dar mal de verdade. Não vai achar de jeito nenhum! Tudo está no lugar, cada precioso detalhe foi aproveitado, acarinhado, concretizado. Lembrei-me, enquanto assistia, que Bárbara Heliodora não se cansou de repetir, em sua crítica no Globo, palavras como “impecável”, “sensacional”, “extraordinário”. Pudera! Como encontrar palavras novas para qualificar toda aquela perfeição? A tradução de diálogos e letras de canções é simplesmente obra de gênio; as soluções encontradas por Charles Möeller são excepcionais, mesmo nos contornos mais espinhosos para casar letra e música. A interpretação dos músicos, sob a regência de Marcelo Castro, é não só respeitosa como cheia de vida, ágil e colorida. Destaque, sem dúvida alguma, para os solos da violinista Taís Soares e do clarinetista Whatson Cardozo, que sublinham momentos inesquecíveis, tanto na introdução do espetáculo como na dança do casamento.

A gama de cores escolhida a dedo para os figurinos (Marcelo Pies) e para a ambientação e cenografia (Rogério Falcão) nos remete ao tempo único de Anatevka, mítica cidade russa que se parece com tantas outras que, abandonadas à força pelos habitantes, por obra e graça da intolerância, permaneceram presentes na alma de quem foi obrigado a deixá-las e buscar nova vida em algum outro lugar. Como o Brasil, por sinal, que soube acolher e integrar tantas famílias, ajudar a curar tantas dores e a cultivar novas esperanças. Assim foi, por exemplo, com a família de Soraya Ravenle - que, cristalina como sempre, brilha intensamente como Golde, a cara-metade do leiteiro Tevye. No vídeo do making-of, a atriz confessa que, quase instintivamente, foi percebendo detalhes da mãe, da avó e de tantas outras mulheres importantes em sua vida, impregnados na composição da personagem. Uma Soraya com o mesmo talento, mas bem diferente daquela que conhecemos de tantos musicais, se impõe pela fibra feminina de Golde, sempre pronta a enfrentar o que for necessário para garantir o bem-estar de sua família. E, naturalmente, pela linda voz. Um detalhe tocante imprime ainda mais verdade à matriarca: Chava, a terceira das cinco filhas, é vivida por Júlia Bernat, filha real de Soraya. Vê-las juntas em cena me lembrou um verso de Drummond que adoro, do poema Resíduo: “... fica um pouco do teu queixo no queixo de tua filha...” No caso de Soraya e Júlia, a máxima drummoniana se aplica muito bem aos olhos, ao “jeito” – e sobretudo ao talento, tão pródigo nas duas.

Um violinista no telhado toca em cordas que vão muito além do violino intermitente ou do leitmotiv israelita que marca sua trilha. O mundo ideal das pequenas aldeias, a tradição vivida à risca, a noção de riqueza evocada pelo leiteiro na inesquecível canção Ah, se eu fosse rico!..., medida pela quantidade de galinhas e patos no quintal, nos falam de coisas que ultrapassam em muito os costumes judaicos, que a obra tem o mérito inegável de apresentar ao mundo com beleza e respeito. Tão atuais na Rússia do final do século 19 como hoje, em muitas partes do mundo, os dilemas de quem vê sua vida sacudida pelo medo e pela intransigência em suas várias vertentes – intolerância religiosa, xenofobia, homofobia e muitas mais – são os mesmos: escolher entre transcender a dor e a revolta ou ceder a elas e aumentar ainda mais a pressão. A memória de Anatevka e a força de resistir, exemplificadas por personagens como Hodel, que enfrenta a Sibéria gelada para salvar seu amado Perchik, ou Chava, que rompe a tradição dos casamentos interraciais mas expressa corajosamente o seu amor pela família, nos colocam diante de antigas questões que, apesar das roupas novas da atualidade, permanecem essenciais. Que escolhas devemos fazer, num mundo em transformação? E de que modo a arte, em sua beleza e transcendência, nos convida a empreender essa busca?

Mas tudo isso só nos vem depois que a festa de cores, vozes, canções, delicadeza e interpretação, sutileza e profissionalismo, alegria, tristeza, espanto e música nos toma de assalto e nos leva a sonhar, delirar, rir e chorar como se Anatevka fosse o nosso lar e a Broadway, transmutada definitivamente no Brasil dos musicais, tivesse se mudado de vez – e em português! – para o palco do Oi Casa Grande.

sábado, junho 04, 2011

Da frágil e fascinante matéria humana

As protagonistas de Lado B:
Laura Prochet, Mônica Barbosa, Bettina Dalcanale e Karen Mesquita
Foto: Bruno Veiga (divulgação)

Os atropelos de uma estreia, o corre-corre para limpar o palco, acertar som e luz, a euforia exagerada pra tentar disfarçar aquele nervoso que percorre o estômago de todo mundo na reta final, hora de apelar para o santo de devoção, orixá, Fraternidade Branca ou o que mais houver – tudo junto e misturado e justamente na hora que o público se acotovela para entrar no teatro. É esse inesperado e adorável mix de situações e reações que faz de Lado B uma delícia de espetáculo.

Para o diretor João Wlamir, uma comédia dançada. Para o público, uma festa. Para os corações atentos, um verdadeiro espelho para o humano e suas contradições. Todo mundo ri, chora, perde o controle. Todo mundo tem um “lado B” que explode nas mais variadas circunstâncias. E vê-lo no palco é mais ou menos como vivê-lo. Encenando com os elementos do mundo que melhor conhece – o ambiente da dança – o diretor condensa em quatro personagens alguns dos atributos dos sete pecados capitais nos quais se inspirou, sem jamais perder de vista o bom-humor e o traço real dessas “virtudes”, assim como suas consequências.

Laura Prochet, Bettina Dalcanale, Karen Mesquita e Mônica Barbosa, todas bailarinas na pele de atrizes, transitam muito bem na fronteira da dança teatral e revelam excelentes interpretações, vozes colocadas, maturidade. O multifacetado Manoel Francisco cria uma inacreditável Madame Tchersvásky, mâitre de ballet de indecifrável origem, personalidade recheada com a memória de algumas mestras que fizeram (e ainda fazem) história na dança brasileira e de um autêntico repertório de gags que nos remete aos tempos não vividos do melhor teatro de revista. Elegantérrima em seu vestido preto e branco, meias e sapatos pretos, uma torsade à la anos 60 na cabeça e um colar de pérolas no melhor estilo Bonequinha de Luxo, Madame Tchervásky muitas vezes rouba a cena e cria momentos que só mesmo vendo para crer. Contar seria muito pouco para ela.

De saída, todas as bailarinas verbalizam seu estilo, temperamento, ambições. As tensões, picuinhas, diferenças, as pequenas traições e conchavos do dia a dia estão todas em cena, num tom marcadamente bem-humorado e, creio, propositalmente caricatural em alguns momentos. A trama de bastidor desenvolvida por João Wlamir mergulha em crescente profundidade no dia-a-dia da vida de bailarina. E, pelo caminho, toca em cordas sensíveis dentro de quem pertence a esse mundo – e até de quem o viveu apenas por aproximação. A ansiedade de esperar pela tabela e ver quem pegou os melhores papeis, as vitórias e derrotas estampadas no rosto, marcadas no corpo e no gesto. Não faltou nada; nem futricas, nem brigas, nem panelinhas. Nem mesmo momentos poéticos, como quando o assistente de palco, que possivelmente sonha dançar um dia, contempla hipnotizado os trajes das divas, posicionados em suas marcas no chão. A cena, protagonizada pelo jovem bailarino John Lennon da Silva, deixou na beira do palco a marca e a delicadeza de um Marcel Marceau sem máscara.

Os contrapontos divertidos que João habilmente inseriu nos momentos certos também não decepcionaram: o McArthur Park em versão Donna Summer, com direito a figurinos ultrabrilhantes no melhor estilo discothèque, invade a cena – e, curiosamente, saído do iPod da bailarina mais jovem. Ah, a doce bagunça no nosso coração... De repente, bailarinos e atores pescam coadjuvantes na plateia e o palco explode em disco dance.

Do escuro fundo, a voz oculta do diretor pontua a cena, traduz o essencial para a platéia leiga, faz rir, faz calar. Quando enfim se dá o esperado ensaio, outras vozes numa mesma voz inconfundível, a da atriz Cláudia Raia, desnudam o íntimo de cada uma. E o drama domina a cena. O que está dentro vem para o corpo e dá voz de comando. É salve-se quem puder – e, como tantas vezes na vida, nessa e em tantas outras profissões, nem tudo corre conforme cada uma espera. Alguém perde - e, na perda, emociona. O interlúdio final, protagonizado por Laura Prochet, leva-nos todos juntos a um frágil e sentido limite. A atriz que sai do fundo da bela bailarina, nesse momento, é um susto de maturidade, criação, profundidade. De jogar a gente literalmente no chão.

Súbito, do contra-luz que se forma entre a linha do palco, o espelho no fundo e os rostos marcados de dor, emerge a realidade de um sonho: o assistente de palco cria coragem para surpreender. Foi o momento escolhido a dedo por João Wlamir para o solo que John Lennon da Silva criou para A morte do cisne, e que tem emocionado muita gente na internet.

Sim, eu já tinha visto... mas qual. Nada se compara à tessitura desse momento, à força de receber assim, de peito aberto e por inteiro, a criação de John Lennon da Silva, seus movimentos perfeitos num corpo totalmente intuitivo, totalmente talhado para dançar de uma forma que mestre algum poderia ensinar. Senti todos os músculos e sentidos tremerem diante de tanta sincronia, domínio absoluto, pureza... Quanto mais se vê, mais longe se enxerga e para mais longe ainda é possível viajar, compreendendo os milagres de harmonia com os quais o Universo unge alguns poucos eleitos, como John Lennon da Silva. Nas letras desse nome pairam outras letras, outras palavras, quem sabe a sensação de imaginar que no não haja céu ou inferno, nem fronteiras entre países, razões para morrer ou viver, fome ou cobiça no mundo, mas apenas a capacidade de sonhar, acreditar e realizar. Esta, sim, que John Lennon da Silva leva ao pé da letra com seu talento - e que João Wlamir, com tanta sinceridade, oferece ao público, no encerramento encantado dessa obra tão delicada e contundente que é Lado B.

sexta-feira, junho 03, 2011

CARTA ABERTA AO GOVERNADOR SERGIO CABRAL FILHO

Concerto do Movimento SOS-OSB, 30/4/2011
Auditório Leopoldo Miguez, da Escola de Música da UFRJ
Foto: Camila Maia/Agência O Globo (via G1)

Rio de Janeiro, 2 de junho de 2011.

Exmº Sr. Governador

Como cidadã brasileira e fluminense, venho à presença de V. Exª para, como já disse com tanta precisão e delicadeza o Milton Nascimento, “falar de uma coisa”.

Eu não viria até aqui se essa coisa não fosse muito, muito importante. Uma coisa que está ribombando no coração de muita gente nesta cidade, neste estado, no nosso país e em vários outros países.

Falo do patético impasse entre a atual direção da Orquestra Sinfônica Brasileira, dita da cidade do Rio de Janeiro, e 36 valorosos músicos que foram demitidos recentemente por justa causa.

Os motivos são conhecidos. Este é um assunto que suscita fortes paixões, sem dúvida alguma. Mas nenhuma paixão será mais forte do que o senso de justiça que vem tomando conta de milhares de pessoas, músicos ou não, no país e pelo mundo também, como o Sr. certamente tem conhecimento.

Argumentos pró e contra a atitude do maestro Roberto Minczuk são levantados de todos os lados. No entanto, inúmeras personalidades da sociedade brasileira, consideradas unanimidades em termos de ética profissional e conduta – Nelson Freire, Cristina Ortiz, Marlos Nobre, Roberto Tibiriçá, Isaak Karabtchevsky, Myrian Dauelsberg, apenas para citar alguns – não hesitaram em se colocar do lado dos músicos demitidos. De acordo com uma infinidade de artigos publicados na imprensa e outros tantos postados na internet, inclusive em blogs de diversas associações internacionais de músicos, o fato não tem precedentes no mundo. Não se tem notícia de que um maestro, em nome de quesitos como excelência e da qualidade musical, tenha descido sua mão de ferro a um só tempo sobre tantos profissionais, desqualificando-os publicamente, como fez o Sr. Minczuk.

Senhor Governador, ainda que o atual regente e diretor artístico da OSB fosse, por exemplo, meu amigo pessoal, eu jamais poderia apoiar sua atitude, por dever de cidadania e lealdade aos meus princípios. O maestro Marlos Nobre, que foi importante na carreira de Minczuk e tem grande afeto por ele, escreveu uma emocionada carta demonstrando toda sua decepção para com essa conduta lamentável. Todas as declarações de Minczuk na imprensa denotam um visível desequilíbrio: são revestidas de uma aura quase messiânica na defesa de uma excelência inatingível, na crença em uma orquestra absolutamente perfeita, que gravitaria num território próximo a uma espécie de Olimpo musical. Uma delas, inclusive, me deixou particularmente estarrecida: “Este é um projeto para quem é apaixonado por música.”

Me perdoe, Senhor Governador; ouso discordar. Quem é apaixonado por música não reage com tanta violência a qualquer possível desafio à sua autoridade. A autoridade de um maestro vem do conhecimento e da verdade com que o aplica ao exercer o seu ofício. Vem do respeito que conquista entre os músicos, não de uma atitude de disciplinário perante um grupo de crianças.

Já vi o maestro Minczuk reger várias vezes e reconheço seu inegável talento, mas acho importante ressaltar que, para felicidade deste país, há muitos maestros igualmente talentosos, capazes e verdadeiramente apaixonados por música, com ideais e capacidade para construir e irradiar arte por onde passam.

Veja, Senhor Governador: a Orquestra Sinfônica Brasileira existe há 70 anos e jamais teve sua espinha dorsal vergada dessa forma humilhante e vergonhosa, para não dizer desastrosa. É uma instituição privada, porém apoiada pelo Governo do Estado do Rio; pelo BNDES, que é um órgão federal; e pela Vale, uma excelente empresa brasileira. Esses três pilares, que representam em última análise o sustento financeiro da Orquestra, estão emprestando sua credibilidade ao maestro Roberto Minczuk. E o que ele tem feito dela? Aos olhos estarrecidos do país e do mundo, dá exemplo de intolerância, violência e crueldade. Não será em nome da tão propalada excelência musical que os amantes da música vão entrar numa sala de concertos, daqui por diante, para compactuar com a forma como o atual diretor artístico decidiu viabilizar o seu projeto. Aliás, o Senhor pode imaginar como será o primeiro concerto da OSB, com os novos músicos que serão contratados após as recentes audições conduzidas no Brasil e no exterior?

Estou aqui porque respeito o seu senso de justiça, sua capacidade e acredito no seu interesse verdadeiro em elevar o nosso Estado e a cidade do Rio de Janeiro, em melhorar a vida dos cidadãos em todos os aspectos. Penso que, com todo o trabalho que o Sr. vem fazendo, não será justo que sobre o seu governo paire essa mancha indelével, que é ver a OSB manietada e atingida mortalmente por uma atitude motivada tão-somente por razões de orgulho e prestígio pessoal. Portanto eu lhe peço, Senhor Governador, que não deixe isto acontecer. Que tome uma atitude baseada em fatos e dados, análise de conjuntura e sobretudo na verdadeira justiça, para deter esse processo que hoje parece caminhar inexoravelmente para o descrédito da Orquestra Sinfônica Brasileira enquanto instituição e enquanto patrimônio cultural deste país.

Já houve tempos ruins, tempos péssimos, dificuldades que pareciam intransponíveis – e os músicos resistiram. Tomaram decisões históricas enquanto classe, como a de reduzir seus próprios salários para salvar a instituição. Nenhuma direção tem o direito de ferir de morte o coração da Orquestra, como está acontecendo agora. Cabe lembrar que, em orquestras importantíssimas mundo afora, maestros que eram considerados semideuses foram destituídos de seus cargos pelos músicos, como aconteceu com Kurt Masur na Filarmônica de Nova Iorque. E por quê? Porque a instituição ficou do lado de si mesma; não privilegiou o regente, nem mesmo sendo ele Kurt Masur. Preferiu dar crédito ao corpo orquestral.

E o que vemos hoje? O maestro Minczuk desacreditado no mundo inteiro, diante dos olhares horrorizados da classe musical e também de uma parcela considerável e respeitabilíssima da sociedade brasileira. Ainda assim, mantém sua atitude e sua arrogância. Muito poucos defendem o indefensável, Senhor Governador, porque todos sabem que atitudes extremas como a que tomou o maestro, com o respaldo da diretoria da instituição, não dão resultado quando se trata de reunir uma equipe em torno de um objetivo “santo” – ou, como diria um sábio e saudoso mestre que tive, em torno da “guerra santa do nosso ideal”.

Senhor Governador, eu estou aqui para lhe pedir pessoalmente que intervenha, com sua já conhecida capacidade de conciliar, ponderar e administrar questões delicadas, e impeça que essa grave fratura leve a nossa venerável OSB à morte por incompetência, injustiça e iniquidade. E afaste definitivamente o seu governo, que tanto tem feito pelo Estado do Rio, de qualquer associação com uma realidade tão triste como esta que estamos testemunhando.

Muito obrigada,

Maurette Brandt


sexta-feira, maio 27, 2011

Mergulho sincero


Tatyana, de Deborah Colker

Foto: Leo Aversa - Divulgação

Tatyana, o espetáculo que a Cia. Deborah Colker acaba de estrear no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é uma daquelas experiências na vida diante das quais, por um momento, a respiração da gente para e sobrevém a nítida certeza de que estamos próximos de uma espécie de epifania artística. E não revestida de qualquer clima apoteótico, muito pelo contrário, mas de silêncio e delicadeza, de beleza e síntese.
Não toquemos, por enquanto, na história singular da companhia, nem em suas alegrias e conquistas. Fiquemos com Tatyana e Púchkin, com Tchaikovsky e Cranko. E com a profundidade com que Deborah Colker penetrou nas águas de doze mares e cruzou um continente de cultura para chegar a esse nível de essência.
Tudo em Tatyana se comunica imediatamente. A construção coreográfica, cenográfica e estética é de refinada sensibilidade e, ao mesmo tempo, muito fácil de ser compreendida em todos os níveis. As sutis referências de movimentos, atmosferas, cores e drama que evocam o emblemático Onegin de John Cranko não passam despercebidas a quem está familiarizado com o ballet, mas reforçam o mérito da singularidade com que Colker desenvolve sua obra. Tempos de movimentos belos, cuidados, de intensa elegância - e plenitude no conhecimento que dá liberdade aos corpos para construir harmonia.
A ideia central de se aprofundar nos quatro personagens principais – Tatyana, Onegin, Olga e Lenski – e incluir Púchkin como um alter-ego muito participante (vivido pelo espetacular bailarino Dielson Pessoa e pela própria Deborah Colker, em momentos alternados) já tinha sido abordada pela coreógrafa em algumas entrevistas, mas nada se compara à propriedade com que isso se desenrola no palco. As emoções têm cores e formas diferenciadas na personalidade de cada um dos quatro bailarinos que interpretam um mesmo personagem. Dá a sensação de que as imagens e sentimentos se fundem, de alguma forma – e que, mesmo separados, os corpos são um só. Mais importante ainda, o público sente isso na hora e acompanha toda a narrativa como se recebesse um instantâneo dom, por obra e graça da beleza da dança - e de um roteiro musical apuradíssimo, construído no espírito de uma comunhão de 17 anos entre a coreógrafa e o compositor e diretor musical Berna Ceppas. O percurso da música, detalhado num comovente depoimento de Ceppas no super bem-cuidado programa do espetáculo, mostra, além de conhecimento, paixão; além de paixão, beleza; além de beleza, sensibilidade; além de sensibilidade, um profissionalismo a toda prova. Há que destacar o tremendo impacto do recurso de sobrepor as vozes femininas de Elena Konstantinovana Gassionok (em russo) e de Debora Colker (em português) à música de Henryk Górecki, no momento em que Tatyana escreve a Onegin. E aqui só posso me repetir: comunicação imediata, compreensão absoluta, a mais pura dimensão da arte causando o efeito que, em síntese, é sua razão de ser: transformar, salvar e contagiar o público.
Ao longo do espetáculo, a sincronia e o ritmo se completam de tal forma que não há o mais leve sinal de quebra ou fastio. No Ato 1, a movimentação dos bailarinos pelo cenário-árvore de Gringo Cardia é absolutamente suave; todos parecem deslizar o tempo inteiro. E volta a ideia de um refinamento, de uma humanização dos movimentos, talvez mesmo uma libertação inédita da ideia de sofrimento físico que, infelizmente, ainda persegue uma parcela considerável da dança contemporânea que se pratica hoje. E Deborah Colker parece ter ultrapassado essa marca com considerável maturidade, estabelecendo uma nova eloqüência corporal para o seu processo criativo. Não é à-toa que ela mesma diz estar se aproximando, cada vez mais, da condição humana. Sua recriação contemporânea de grandes conjuntos, em analogia estreita com a tradição clássica, em determinadas cenas do Ato II, cria momentos verdadeiramente sublimes, um alento que aponta na direção de uma autêntica revisão conceitual, que forçosamente só pode fazer bem à contemporaneidade.
Uma pulsação diferente marca o duelo entre Onegin e Lenski: a densa dramaticidade, bem marcada coreográfica e musicalmente, sofre, a meu ver, um pequeno abalo com a escolha das armas. Apesar de ficar claro que, ali, a opção foi fugir ao óbvio, as bengalas se saíram razoavelmente bem, mas os leques nem tanto - embora, no conjunto, a cena resulte estética.
Vale ressaltar ainda a propriedade das linhas de luz que se projetam, em teia, no início do Ato II, envolvendo e deslindando, ao mesmo tempo, as transformações dos protagonistas. Aliás, após a visão dessas formas concretizadas no palco, torna-se fácil compreender o depoimento de Deborah Colker ao Globo sobre o uso de um projetor especialíssimo: “Ainda que seja usado apenas em uns três ou quatro segundos, é fundamental.” O movimento e a marcação dessas linhas são, nesse ponto, indispensáveis à compreensão da história. Daí em diante, belezas e mais belezas se revelam continuamente, como as Tatyanas em luta interna no piso superior e as cenas praticamente cinematográficas do reencontro dos protagonistas, fotografadas com luz, num eficiente e contundente jogo de aparições e desaparições que intensifica o drama e, ao mesmo tempo, evoca uma suavidade de desenhos, um aspecto pictórico que cativa profundamente.
O solo de Deborah, marcado por belos efeitos curvilíneos de projeção, pode ser visto como uma celebração, não exatamente circunscrito à história, mas em harmonia com o conjunto. Fui atravessada por uma sensação semelhante à da última vez que Béjart esteve no Municipal com sua companhia - o palco inteiro às escuras e o coreógrafo, em toda sua majestade, emoldurado por um fio horizontal de luz, para receber a homenagem da plateia. As duas situações guardam uma semelhança simbólica: assim como Béjart naquele inesquecível momento, Deborah Colker tem todo o direito de comemorar no contexto dessa obra (provavelmente a sua mais completa e complexa criação até hoje), e bafejada pela alma de Puchkin, numa espécie de mútuo agradecimento pelo bem que o talento de um fez à criação do outro, e que ambos fazem à arte.
Confesso que teria preferido um final sem os efeitos de luz, sem aqueles possíveis flocos azuis de neve que aguaram, em mim, uma apoteose esperada. Coincidentemente, foi o único momento em que o público se confundiu – e hesitou por um instante em sua intenção de aplaudir. Mas este é apenas um detalhe diante da verdade e da força de Tatyana, um espetáculo que enche de orgulho o peito da gente, e que com absoluta certeza será celebrado mundo afora, adicionando novas aclamações à consolidada carreira internacional da Cia. Deborah Colker e de sua notável coreógrafa.

segunda-feira, maio 16, 2011

Da fragilidade, do corpo e da dança

Corpos frágeis, da Cia. Fragmento de Dança
Foto: Cris Lyra (Divulgação)


Pelo território retangular e fracamente iluminado do palco, distribuem-se impressões de movimento e sentimento: seis bailarinos-atores esquadrinham o espaço em desenhos lineares e, ao mesmo tempo, aleatórios, sob o opressivo tilintar de um fugidio tema musical.

Nove mulheres do nosso tempo, unidas por um traço comum – talento e força criadora encarcerados em corpos marcados pela fragilidade – inspiraram o espetáculo “Corpos frágeis”, da Cia. Fragmento de Dança, de São Paulo. Frida Kahlo na pintura, Virginia Woolf e Katherine Mansfield na literatura, Maria Callas no canto lírico, Marie Curie na ciência, Jacqueline du Pré na música erudita, Billie Holiday no jazz, Simone Weil na filosofia e Judy Garland no cinema e no show-business, foram decodificadas em movimentos muito livremente inspirados em suas vidas e obras. Para este trabalho, a companhia paulista, que se autodefine como dedicada à pesquisa e a criação em dança contemporânea, partiu do livro “Corpos frágeis, mulheres poderosas”, de Marta Martoccia e Javiera Gutièrrez, que evoca essas personalidades sob o prisma da relação entre dor e criação, entre fragilidade e força, que marcou todas elas.

Detalhes como a pequena exposição de fotos e textos, montada como um relicário de lembranças no hall de entrada do teatro, deixam entrever o nível de envolvimento de todos os criadores com o trabalho. Esse fervor, essa entrega, coisas próprias do transe artístico, emocionam ao nos fornecer uma pequena medida do esforço envolvido na concepção de uma obra, e valem muito para despertar o interesse.

No compasso do opressivo tilintar do primeiro e fugidio tema musical, espero por essas personagens, algumas quase íntimas, outras quase estranhas. E desde logo percebo que a economia é um forte aspecto da composição dos movimentos, que por vezes chegam a cortar a atmosfera sombria. As tonalidades escolhidas para figurino e [pouca] luz, que transitam por nuances do sépia ao marrom, formam um conjunto harmônico. A coreografia de Vanessa Macedo, que também assina a direção, revela-se crua e despojada, com tendência a “deixar” o palco, de certa forma. Sequências retilíneas, ausência de expressão nos rostos, movimentos que ficam a meio caminho, contribuem para ampliar a sensação de opressão.

Reconheço vestígios, talvez, de algumas das personas retratadas, mas eles desaparecem tão rapidamente em meio às tortuosas sequências que fico me perguntando se teriam sido fruto da minha imaginação. Rendas, babados, arcos de violoncelo, contorções, corpos apanhados horizontalmente e atirados ao chão de modo sincopado, pessoas arrancadas de cadeiras, agressores que se tornam agredidos e assim sucessivamente... Tudo marcado por uma trilha competentemente desenhada para perseguir, com variações, a atmosfera opressiva – o que resulta em alguma perda de dinâmica no processo.

Corpos frágeis tem muito de teatro e muito pouco de dança. Momentos de claridade, como o único pas-de-deux de verdade, que acontece já próximo do final, mostram que alguns dos bailarinos têm mais para oferecer do que o espetáculo permite. Fiquei com a sensação de que todo o investimento feito na pesquisa não se traduziu, efetivamente, em dança; e mais, a comunicação com o público também não aconteceu completamente. Tenho razões para acreditar que nem todo o simbolismo evocado foi compreendido, visto que os aplausos, na noite em que assisti, não foram além da educação. Apesar de sua delicadeza, as cenas finais envolvendo as pérolas ficaram soltas no espaço. Faltou arremate e, sobretudo, aquele “clic” essencial com a plateia.

Acho que a dança contemporânea, com tantos e inegáveis talentos – como os que vimos em Corpos frágeis, por exemplo – precisa se lembrar de algo básico: é válido se embrenhar em pesquisa, desde que ela resulte em movimento encadeado, cadenciado, contínuo e executado com beleza. Em outras palavras, desde que se transforme em dança.


terça-feira, maio 03, 2011

domingo, abril 03, 2011

Inconcebível

Orquestra Sinfônica Brasileira na Sala São Paulo
Foto: Divulgação

Que a nossa sofrida (e querida) Orquestra Sinfônica Brasileira já passou por poucas e boas, quem a acompanha desde sempre sabe. Crises financeiras que muitas vezes pareciam insolúveis, descaso do poder público e por aí vai. Mas a mancha de ferir a própria carne, como agora, é nova, surpreendente e inqualificável.
Lembro de ver, na imprensa, muitos elogios ao ascendente maestro Roberto Minczuk e seu "dinamismo", seu "empenho" e sua "capacidade" para virar a mesa da OSB, logo que assumiu sua direção. Saiu à luta, convocou patrocinadores, buscou um modelo de operação inspirado em outras orquestras do mundo e venceu a parada, colhendo os vivas e aplausos com aparente humildade. Talentoso, sim, não resta dúvida; comunicativo, ganhou a simpatia de muitas plateias diferentes, sempre falando em Deus e evocando sua origem evangélica assumida.
Neste momento absurdo que a OSB e seus músicos vivem, diante dos estarrecidos olhos do mundo artístico, a gente vê, com tristeza, que religião alguma é capaz de vencer as armadilhas da natureza humana. A fama do bem-sucedido e aparentemente sempre disposto maestro certamente subiu à cabeça. Apesar de todas as vozes que alertam, clamam e apelam ao seu bom-senso, o diretor não ouve ninguém e, com absoluta truculência, submete os músicos que o apoiaram na reconstrução da entidade a humilhações inimagináveis, que culminaram com a recente e arbitrária demissão de 40 deles, por não terem comparecido a uma absurda "prova de qualificação profissional" que ele inventou.
Acho que o maestro devia estar ouvindo rádio no dia em que o Sr. Sérgio Besserman Vianna declarou, no programa de Lucia Hipólito, que "o Rio não precisava de três orquestras", e sim de "uma única e grande orquestra". Talvez inspirado nessa assertiva, resolveu criar à sua volta, de modo absolutamente autoritário e sem qualquer embasamento real, um "estado da arte" delirante. Agora, 40 dos músicos que dedicaram sua arte, talento e esforço pessoal para colocar a OSB no patamar de excelência que vinha consolidando, terão de recorrer à Justiça para - se tiverem a sorte de encontrar um juiz sensível, profissional e com senso de realidadea - tentar ser reintegrados à instituição. Enquanto isso Minczuk, contrário a todos cânones básicos de um bom cristão, que tanto alardeia, segue, implacável e como que intocável, sua trilha de destruição em nome da "arte".
Artistas sérios e conscientes como Cristina Ortiz e Roberto Tibiriçá, para quem a fama não se deu a qualquer preço e foi, sim, conquistada com muito trabalho, esforço e disciplina, cancelaram seus concertos com a OSB em solidariedade aos seus músicos. Atitude exemplar que deveria ser seguida por todos os artistas e pelo público também.
Para tentar neutralizar a péssima imagem ditatorial que vem granjeando com suas atitudes, o maestro rege no próximo domingo, no Municipal - na matinê ao preço simbólico de 1 real - um espetáculo chamado Tributo a Portinari. O estratagema é usar a OSB Jovem e bailarinos de destaque, como Ana Botafogo, para atrair a atenção do público e fingir que está tudo bem.
Penso que o corpo artístico do Theatro e a própria direção da casa deveriam, como diziam os antigos, "cortar suas asas" e não permitir a escalada de um processo que apresenta todos os sintomas de uma egotrip de quem se considera acima do bem e do mal, da ética e do respeito humano e artístico que deve à sua orquestra.
O público, por sua vez, precisa ser mais bem informado, com objetividade e presteza.
(Um panfletozinho bem resumido, distribuido na imensa fila que se forma em torno do Theatro, nas manhãs dominicais a 1 real, por exemplo, quem sabe?)
O que me causa espécie é que os patrocinadores da OSB, assim como a direção dos teatros onde a Orquestra tem agendados concertos, não se posicionem no sentido de exigir ou retratação de tais atitudes ou, se o maestro radicalizar, pelo menos uma decente renúncia ao cargo que, apesar de todo o seu talento, não está conseguindo exercer com bom-senso.
Vamos acordar! Num trecho da elegante e comovente correspondência que lhe dirigiu, divulgada na internet por grupos de apoio aos músicos da OSB, a sra. Francine Schutzman, Presidente do Conselho Executivo da Organização Canadense dos Músicos de Orquestras Sinfônicas - à qual Minczuk presta serviços naquele país - , declarou:
[...] Aqueles que trabalharam com o senhor nas orquestras canadenses atestarão que o senhor trouxe um compromisso forte com os mais altos níveis de desempenho de uma orquestra. Nós apoiamos e compartilhamos esse compromisso; no entanto, prcisamos e devemos salientar que altas ambições artísticas precisam ser unidas ao respeito e à compreensão. Como Alex Klein observou, a história das orquestras - e em particular das grandes orquestras - tem sido marcada pelo respeito aos músicos como artistas e pessoas. Estas condições não são somente necessárias para nós, que atuamos em uma profissão altamente exigente, mas são importantes para aqueles possuem ideais artísticos elevados. Chamar uma orquestra inteira para se preparar a defender os seus postos de trabalho em uma avaliação de desempenho, com um tempo de preparação limitado, durante um período programado como férias, só pode levar a uma atmosfera de desconfiança e hostilidade. Isso reflete negativamente em todos nós, e compromete o espírito de uma orquestra - que, afinal, depende, para o seu sucesso, da confiança e de um trabalho coletivo. O senhor pode não estar ciente disso, mas os olhos dos músicos e ativistas sindicais de todo o mundo estão sobre o senhor agora."
Se nem diante de argumentos como estes e do protesto veemente e qualificado de personalidades como Alex Klein e John Neschling, entre tantos outros, nada se faz para reverter esse quadro de desconfiança e hostilidade, como diz Schutzman, e de desrespeito, o que podem esperar do seu país os talentosos músicos que dedicam sua vida a nos proporcionar a rara felicidade de possuir e se orgulhar de uma orquestra como a OSB?
Será que não está passando da hora de agirmos todos - artistas, casas de espetáculo, patrocinadores e público - para frear essa ambição desmedida disfarçada de "profissionalismo"?


segunda-feira, março 28, 2011

Nas asas da mente

Natalie Portman, no filme "Cisne Negro"
Foto: Divulgação

Natalie Portman é uma atriz singular e, a meu ver, de grande valor. Tem uma trajetória que prima por uma intensa e honesta busca pessoal de conteúdo para expressar sua arte. O fato de ter escolhido atuar no filme Free Zone, do diretor israelense Amos Gitai (2005), já seria uma suficiente demonstração dessa atitude. Assim como toda a evidente dedicação e o profundo envolvimento com a personagem Nina, do filme Cisne Negro, de Darren Aronofsky, que lhe valeu o Oscar de Melhor Atriz 2010, sem dúvida merecido.

Se a atriz merece, neste momento, todas as láureas, o mesmo não posso dizer do filme, que assisti - tardiamente, reconheço - ontem à noite. É daqueles filmes cujo trailer promete mais do que efetivamente acontece na tela.

Confesso que ainda estou em dúvida se a proposta do diretor foi retratar o clima competitivo e opressivo dentro de uma companhia de dança ou se, na verdade, sua intenção central era retratar um surto psicótico de uma pessoa atormentada. Minha percepção fica com a segunda hipótese.

Desde o início, os recursos utilizados - câmera nervosa, ângulos fechados, espaços confinados, closes - revelam a essência da personagem Nina, presa em si mesma. Ainda que algumas questões pertinentes sobre o ambiente do ballet sejam apontadas - as dificuldades de uma diva para enfrentar o fim da carreira, a ambição de um diretor por reconhecimento, as pequenas invejas do dia a dia dentro de um corpo de baile, a obsessão pela magreza, e mesmo, no caso de Nina, uma mãe superprotetora e carregada de frustrações pessoais - , tudo isso não vai muito além de figuração, diante do poder absoluto da disfunção mental da protagonista. Chego a pensar que o pano de fundo poderia ser qualquer outro; nossa sociedade hipercompetitiva oferece um vasto leque de opções que poderiam ser usadas com o mesmo fim.

No centro da ação está Nina, num processo agudo de autodestruição inapelável. Não se demora a perceber que a bailarina em ascensão transita entre dois mundos, o real e o interno, este marcado por imenso rigor e crueldade, que ela usa com rara habilidade contra si mesma. Uma das virtudes do filme é saber mostrar isso com equilíbrio; a competente edição cria momentos de respiro para o espectador e, com respeito à sua inteligência, permite que ele deduza, conclua e acompanhe a ação ao mesmo tempo.

Não se percebe, em Nina, um único momento de inocência, de puro devotamento à dança; a cobrança interior está marcada no rosto desde a primeira cena (vale sublinhar, mais uma vez, o soberbo desempenho da atriz). Quem esperava uma doce menina sujeita às agruras de várias cobras criadas num ambiente hostil, logo se desilude. Nina carrega dentro de si algo de monstruoso, algo que é muito mais preponderante do que a realização do talento; a obsessão absoluta por uma perfeição impossível. Superar o limite é muito mais importante do que ser feliz.

Não, Nina não quer ser feliz; sua alma-gêmea interior é a obsessão, da qual jamais irá se livrar, independentemente da ação de qualquer pessoa à sua volta. O roubo dos objetos pessoais da primeira bailarina, nesse sentido, funciona como uma espécie de "âncora" da obsessão - por isso volta, no único (e breve) momento em que ela cogita se livrar do peso e os devolve. Quer dizer: isto na hipótese de serem reais o atropelamento e a internação da bailarina, que podem muito bem ser parte do imenso arsenal de artimanhas do processo doentio de Nina.

Do ponto de vista do pano de fundo escolhido - o ballet - o filme fracassa em oferecer ao público momentos de beleza. Os louváveis esforços de Natalie Portman para se transformar em bailarina resultam em cenas grotescas, sem nenhuma qualidade de dança. Aliás, o fato de o diretor não ter se preocupado em rechear com dança de verdade alguns momentos do filme reforça minha tese de que o que lhe interessa é a psicose, e não o ambiente do ballet. Do ponto de vista alegórico, a cena da "encarnação" do Cisne Negro é forte e interessante, ainda que tal encarnação, apesar dos esforços do coreógrafo e da protagonista, não vá além da máscara maquiada, do véu ou das asas. Quem já viu um Cisne Negro de verdade sabe muito bem disso.

Dentre os agentes que poderiam (mas não conseguem, na realidade) agravar o estado mental de NIna, destaque para o desempenho da soberba Barbara Hershey, no papel da mãe - a meu ver, uma figura injustiçada, pois seu aparente domínio sobre a filha ou suas frustrações se mostram pálidos em relação à dimensão do processo destrutivo que ocorre dentro de Nina. O coreógrafo, brilhantemente vivido por Vincent Cassel, é um personagem mais palatável, que equilibra bem suas contradições. E a grande revelação que é a atuação de Mila Kunis, que muitas vezes rouba a cena com a leveza e a eloquência de sua personagem perfeitamente colocada.

Cisne Negro é tudo menos um filme sobre o ballet. Nesse particular, o trono absoluto ainda é ocupado pelo brilhante Momento de Decisão, de Herbert Ross (1977), que tratou com muito mais habilidade e verdade os reais problemas que acontecem dentro de uma companhia de dança, assim como os sucessos e frustações dos bailarinos. Isso sem falar na atuação de dois monstros sagrados no sentido da palavra; Anne Bancroft e Shirley MacLaine. O resto, queridos amigos, é história.


quinta-feira, março 24, 2011

Manoel Francisco no show "Toma um trago e lava o coração"
Foto: Divulgação


Numa curva do tempo, o vento se dobra à verdade da arte. De uma estrofe de Vinícius, de um acorde de Baden e do fundo de dentro de um grande artista brasileiro, nasce um espetáculo que marca um lugar especial na cena do Rio: “Toma um trago e lava o coração”, na voz de Manoel Francisco, é um show musical que a cidade jamais esquecerá.

O talentosíssimo bailarino brasileiro de carreira internacional, que imortalizou diversos personagens nos maiores teatros do mundo, inclusive o Municipal do Rio, põe a nu a sua alma com incrível verdade e beleza. A voz clara, o coração na garganta, a interpretação precisa, o corpo inteiramente musical e uma memória afetiva feita de canções que, para dizer o mínimo, são capazes de contar todas as histórias, são alguns dos ingredientes de um show raro, no mais rigoroso sentido dessa palavra.

Há um bom tempo as pessoas parecem ter se esquecido do valor absoluto da intimidade entre plateia e artistas, hábito que a nossa tradição boêmia cultivava e que criava uma aliança diferente, toda própria, entre platéias e ídolos. A gente até costumava se referir aos nossos artistas pelo primeiro nome: “Ontem fui ver o Chico”, “A Marisa [Gata Mansa] está no Teatro Dulcina”, “a Nara cantou muito bem ontem”, “o Francis está fantástico no show”, e por aí vai. As megaproduções de hoje, além de cortar esse barato, transformam quase tudo em apoteose...

Um momento como “Toma um trago e lava o coração”, no pequeno e aconchegante Espaço Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, a meu ver vale mais que duzentos Canecões, quatrocentos Vivo Rio ou, com o perdão da má palavra, mil e trezentos Claro Halls.

Acompanhado por um baixo acústico, violão e guitarra, Manoel Francisco põe em cena o seu drama e a poesia das canções que ama desde sempre. Esse amor, logo de cara, é o traço mais evidente. Completamente à vontade, como se nos convidasse à sala de sua casa, Manoel conta as histórias das canções e homenageia compositores e intérpretes, como a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim, Angela Maria e Altemar Dutra (Tango para Tereza, Somos iguais, Brigas) . Em interpretações absolutamente surpreendentes, evoca o Roberto Carlos da década de 1970 (As flores do jardim da nossa casa e Por amor). Ah, como eu me lembro desse disco do Rei, com um desenho a crayon do seu retrato na capa, que peguei emprestado e quase furei, na minha vitrolinha 007 preta!

Manoel Francisco dança com a voz de modo incomum. Se algumas influências transparecem, ainda assim são transformadas por um estilo cravejado de detalhes personalíssimos. Suas escolhas também são únicas: de Piaf, por exemplo, elegeu La Folle, numa versão absolutamente pessoal – que, tocante, ainda assim não nos naufraga, mas nos faz velejar na memória de um dos períodos mais ricos da música francesa. De Aznavour, nada do belo trivial de sempre; o baú de Manoel Francisco é bem mais fundo e recheado. Foi buscar a impressionante Comme ils disent e a mais que delicada Non, je n’ai rien oublié, perfumada de poesia, com a qual fez uma pública e comovente homenagem à primeira-bailarina Cristina Martinelli – que, extasiada, desfazia-se em emoção na primeira fila, ao lado de sua não menos emocionada mãe.

O mais interessante é que a forma de lembrar de Manoel Francisco não é nostálgica, no sentido da palavra; as canções tomam forma e corpo novos, atravessam o tempo com vigor, têm efeito mágico no momento em que se produzem novamente, quase como se estreassem, ainda que vivam, de múltiplas formas, na memória de quem as conhece de outras eras. A direção de Nana Caymmi é outra presença que Manoel pontua, de modo sensível, na história do espetáculo, assim como o roteiro de Alexei Waichenberg. Depois disso – diz, referindo-se a uma sequência que fecha magistralmente com Franqueza, de Maysa – a minha diretora disse: eu só posso sair daqui pra ser esfaqueada! , para dar apenas uma medida da assinatura consistente de Nana no processo. Aliás, a homenagem a Dorival Caymmi não poderia ter sido mais delicada: Um bom lugar/pra se amar/Copacabana... Poesia pura de um Caymmi encantado pelo Rio, cidade e estado que adotou, após se apaixonar por sua Stela, e acrescentou à baianice que imprimiu no nosso sangue para sempre.

O show “Toma um trago e lava o coração”, de Manoel Francisco, deveria ficar em cartaz indefinidamente, e não apenas até dia 30 de março. Eu, pelo menos, jamais vou conseguir me separar dele! É o momento magistral de um artista que viveu tudo e ainda tem muito mais para nos fazer viver. É toda uma nova forma de sentir, evocar, emocionar, fabricar felicidade em forma de canções. É uma voz que cria continuamente, um estilo contundente e novo, entre o nunca-esquecer e o re-conhecer. É uma porta de poesia a nos transportar entre mundos que, felizmente, ainda são possíveis nos dias de hoje, num pequeno ambiente de imensas possibilidades, artísticas e amorosas. A Manoel Francisco, o meu aplauso de pé.