sábado, setembro 01, 2012

O verão vem!...

Passas sem ver teu vigia
catando a poesia
que entornas no chão
(Chico Buarque, As vitrines)


Não, eu não tinha previsão de uma sequência aqui. Mas o imprevisível é matéria da arte - e urge fazer reverberar Regina Duarte. Tudo por causa da teimosa e avassaladora poesia de Rilke.
Ré confessa, assumo o único roubo que perpetrei na vida: uma edição amarelecida de Elegias de Duíno e Cartas a um jovem poeta, com o perdão eterno pela devoção às suas pródigas imagens, quase dança, quase oração. De Rilke não mais me livrei pela vida afora, e a ele devo as crises relativamente frequentes que Drummond definia como "uma ligeira elevação da temperatura", tal como ocorre agora.
 Paciência é tudo, diz o poeta no sorriso de Regina Duarte, ao fechar o Programa do Jô como quem fecha solenemente uma brochura de capa de couro verde, com letras douradas, muito parecida com aquela que Walt Disney fechava ao fim de cada uma das suas histórias, na tevê.


Foto: Divulgação

A entrevista de Regina ao Jô Soares, que me perdoe a febre que ora me aperta, foi de uma camaradagem tão deliciosa que quase não dava ideia de que acontecia atrás de uma tela; era talvez na casa da gente, na copa-cozinha dos anos 1960, com café e bolo. Coisa de amigos queridos que retomam o papo, em qualquer tempo, no mesmo ponto da vida inteira.
Regina e sua naturalidade, o inconfundível riso e a clareza no rosto. Elegante, profissional, madura e gente acima de tudo. Ouvir as histórias de sua carreira com o tempero exato de cada momento, saber o que ela pensa sobre a arte, a vida, o agora, é como flutuar sob as mil faces da sua pele de atriz. Como um outro que, neste momento, a habita e enxerga com os olhos dela.
Quarenta e seis personagens, responde Ivan Izzo - biógrafo, fã e amigo - ao Jô, direto da plateia. Se contar o teatro amador são 57, assinala. E nem assim a gente corre o risco de se acostumar com ela; ao contrário, cada susto vem seguido de outro, é um certo dom de surpreender que jamais abandona os grandes talentos. Seria, por acaso, diferente com ela?
 Em tempo de grandes homenagens pelos 50 anos de carreira, Regina compartilha mais uma vez o seu entusiasmo pelo trabalho, o seu amor pela vida. Sentimos um orgulho danado, misturados que somos com tudo dela que entrou em casa esses anos todos, projetado e como que guardado pela telinha. O próprio Jô se declarou emocionado com a sequência original de alguns desses momentos de Regina, mostrados durante o programa.Nossa memória - não tanto, talvez, como a de Ivan Izzo, preciso nos detalhes memorialísticos - se refestela ao relembrar tantos momentos revividos nos VTs que o Jô compartilhou. Cenas aparentemente corriqueiras tornam-se verdadeiras varinhas mágicas: mexem fundo na gente e no tempo vivido, fazendo afluir à superfície um pouco do que a gente era quando Regina disse aquilo, quando chorou, se descabelou ou fez a gente rir muito.
Foi bom conhecer a Regina shakespeariana em sua origem, quando, dirigida por Jô Soares, contracenou com Renato Machado em Romeu e Julieta. E com que autoridade e sutileza lê, o rosto na câmera, um trecho da Julieta que fez, com a alma da menina que é e com o peso da bagagem que acumulou na vida e na arte!
Não quero e nem devo me estender aqui. Quero oferecer a vocês a vibração das palavras ditas, com o eco daquele abundante sorriso - velho conhecido que não admite que nos enganemos na presença de Regina Duarte, seja em que pele for - e com tudo que transborda dessa grande mulher brasileira, quando interpreta um trecho das Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke. Aí vocês entenderão o título desta crônica.
Como não é permitido publicar o vídeo aqui, vejam no YouTube.

 




quinta-feira, agosto 23, 2012

É ela! (pelos cenários de Regina)

Foto: Ettore Belangero Preite
Material fotográfico gentilmente cedido pela produção da Exposição
Agradecimentos: Ivan Bellangero Izzo e Ettore Belangero Preite

Regina Duarte - quem diria? - faz 50 anos de carreira. Tantas vidas compartilhadas com a gente que até se perde a conta. Uma garota sapeca que vive sua arte na pele e distribui até hoje, sem medida alguma, o mesmo sorriso desabrido, desarmado, inequívoco, absolutamente familiar. 
Não há teoria sociológica que explique por que a gente conhece tão bem essa moça que atravessa a vida do nosso lado, chora e ri conosco, essa pessoa por quem a gente torce, reza, até faz novena se preciso for. Bendita ilusão que acaba mesmo virando verdade. Afinal, tudo ou quase tudo na TV, que se insinua e nos envolve desde os imemoriais tempos em que ver novela era o pecado mais cometido nos lares brasileiros, é real à sua maneira. E mais real que Regina Duarte, só mesmo Regina Duarte.
  Lembro de coisas do arco da velha, enquanto reconstruo essa Regina que vive dentro de mim. Minhas tardes de sol, pra te encontrar... A letra brota, a canção está guardada em algum disco de novela que já nem sei qual é e nas dobras mais fundas da memória. A galera do fã-clube, quase cem por cento mais nova, me olha hipnotizada e diz que eu faço pergunta difícil. Ah, mas só quando a memória me trai. Sim, eu vi Legião dos Esquecidos na antiga TV Excelsior. Vi Dibuk, um grande caso especial da Globo que reencontro, numa tevê antiga, na sala de jantar da exposição. Passei Minha doce namorada inteira cruzando os dedos pela Patrícia e ouvindo, todos os dias, a voz do meu querido e saudoso amigo Eduardo Conde cantar, na abertura, "Seja onde for, seja tempo de riso ou de dor, ao teu lado será como um dia de sol." Em plena adolescência, achava o máximo morar no parquinho e ler o jornal de 1910 da Tia Miquita, aberto sempre na mesmíssima data.

 Regina Duarte como Viúva Porcina
Foto: Acervo da exposição


Regina é tão presente que todos esses detalhes são praticamente coisas de família, de parente próximo. Relembrar e, ao mesmo tempo, dar-me conta da imensa garra desse furacão semiencoberto por um rosto de anjo, é reconstituir na alma a própria efervescência da televisão brasileira, que tantos grandes atores e atrizes tem colecionado pela vida. Ver Regina jogar-se inteira em Malu Mulher, em Porcina, em Chiquinha Gonzaga - meu Deus, que momento GRANDE! - é privilégio não de poucos, mas de todos! Este é o grande barato e a dádiva máxima da teledramaturgia brasileira. Em nenhum outro lugar do mundo há esse jorrar de talentos entrando em casa e se oferecendo, com toda sua arte e o tempo inteiro, ao cidadão comum. 

 Regina Duarte e Ivan Izzo
Foto: Ettore Belangero Preite

Na festa dos 50, emoção é palavra fácil. Graças aos amigos do fã-clube, a quem fui apresentada recentemente pela amiga Danielle Crepaldi, posso testemunhar esse retribuir tão divinamente preparado e realizado em honra de Regina Duarte. Ivan Izzo, o artífice do sonho que se transformou na exposição "Espelho da arte - A atriz e seu tempo", inaugurada em 21 de agosto no Centro Cultural dos Correios, no Rio, criou habilmente espaços de confluência que tornam mais nítida do que nunca a intimidade natural do público com Regina. Estamos todos, enfim, em casa entre suas coisas, em meio a todos (ou quase todos) os traços de sua passagem.

 Foto: Ettore Belangero Preite

Diante de tanta gente e tanta expectativa, penso no que vai no coração dela. Do lugar que me cabe na plateia, ouço as amorosas confissões de Izzo, as tímidas brincadeiras do apresentador Rodrigo Santoro. Acompanho o show de um jovem chamado Diego Moraes, que desfila os temas musicais de tantas protagonistas. E canto tudo que a CPU da alma é capaz de buscar em meus arquivos. Na primeira fila tudo explode e borbulha, adivinho sem ver. E Regina, ao agradecer, confirma.

Foto: Ettore Belangero Preite

Mas o pior, o mais forte, o mais arrasa-quarteirão, ainda estava por vir. Rodrigo Santoro chamou, Zizi Possi subiu "só porque você é você, Regina", e a partir daí quem quiser que aguente. Não adiantou apertar o cinto ou convocar a habilidade do piloto Marcelo nas pistas de Véu de Noiva; Per Amore, de Mariella Nava, o tema da Helena de Por amor, entrou rasgando no peito - e a eterna Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo, que Regina adora, terminou de esfolar. Nada a fazer senão juntar cacos e lágrimas, agradecer e reunir rapidinho o maior número possível de rodos, vassouras e panos de chão, na esperança de que sejam capazes de deter a inundação da alma.

Regina Duarte e Zizi Possi
Foto: Ettore Belangero Preite

Meu cara a cara com Regina começou no ano passado, quando, como assessora de imprensa, acompanhei sua participação especial no filme Astro, dirigido por Paula Trabulsi. Sua simplicidade me contagiou. Ficou dali um carinho guardado para além da TV. O segundo momento, recente, aconteceu após a peça Raimunda, Raimunda, no CCBB do Rio, por obra e graça do fã-clube. E o terceiro na exposição, quando, diante de um painel de fotos, Regina admitiu estar "muito Claudia Cardinale". - Puxa, Regina, sabe que vocês têm tudo a ver?? - empolguei-me. Não me conformo de nunca ter percebido essa conexão... Bem mais tarde, festa bombando e flashes pipocando, peço uma "foto Cardinale" e ela faz, o gesto cúmplice, alegria por todos os poros. Regina é uma festa para todos nós. Comemorada com amor por uma carreira como poucas, curtiu tudo na noite de estreia como a criança que é, a alma leve, o prazer de viver refulgindo nos olhos. Parafraseando a canção-tema de Tia Miquita, que Célia Biar viveu em Minha doce namorada, só tenho a dizer: viva Regina, seja bendita, e seja sempre tudo isso que é você.

sexta-feira, julho 13, 2012

E de tudo Flip um pouco...

 Fonte: www.flip.org.br



Com certeza, o amado Drummond me perdoará por parafraseá-lo, após cinco belos dias de sol e de saudades revividas da sua poesia, da presença e do  bom humor discretamente disfarçado. Mas é verdade: não há como passar por uma Flip, sobretudo por esta, sem guardar na alma os resíduos vários - a alma das ruas, a alma dependurada nos poemas, em voz alta e em vozes outras, soltos pela festa, dançados pelas crianças, espalhados em cartões postais. A décima Flip só poderia, mesmo, ser drummoniana, embora a moda vigente no local fosse dizer "drummondiana". Gosto mais à antiga, do jeito que se falava no tempo em que conversávamos sobre rimas e soluções.
Mas todos os poetas te fizeram jus, caro Carlos, assim como quase todos os ensaístas e teóricos que trataram da tua vida e obra em uma festa que decerto te agradaria. Convidado, talvez não viesses, tu que eras tão cioso dos teus enigmas e que, no entanto, tantas vezes espiava pelas frestas do espírito e das coisas com o maior sorriso maroto, aquele que ninguém te creditaria. Afinal, é tão mais fácil crer que eras assim ou assado, não?
Vendo teu retrato de pijama, óculos na mão, olhar sabe-se lá onde, envolvido pelo piano que pontuava as leituras da tua poesia, quis dar um rewind no cassete do tempo, sem mais tecnologias, para ouvir tuas piadas de novo. Olha, muitas vezes quase consegui. No mais, foi o abraço constante de teus poemas que me passeou pelas ruas de pedra rolada, como se um anjo torto quisesse me ensinar como afagar tua ausência em redondilhas de memória.
Nesta Flip que foi tua, e tão amplamente partilhada, tive vontade de voltar contigo à Livraria Leonardo Da Vinci ou à Casa Cavé. Melhor: em Paraty, acho que preferirias um sorvete na beira do rio, ou simplesmente largar-se no rumo do mar, da maré que escoa entre as pedras quase toda manhã. Como de tudo fica um pouco, ficam de ti as palavras e o riso contido, o olhar de nunca-jamais e o jeito sério-fingido com que me falavas da vida além de si mesma. Nesta Flip, após anos, ficou absurdamente claro o quanto da tua ternura, feita soneto, mar e maresia, ainda transborda dentro de mim.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

É ser feliz e mais nada

Foto: Marian Starosta - Divulgação


Juventude não é, nem nunca foi, um atributo que a pessoa tem ou não tem. Juventude é um período da vida; em certos casos, toda uma vida. Mas é inegável que há nela um tipo de oxigênio que não circula no corpo em qualquer outra época da existência. Em sua composição tem coragem, irreverência, um estado cândido de se equilibrar entre o impossível e o viável, numa tensão criadora permanente que respeita tudo e nada, que ri com a vida, chora com ela e ressurge, mais inteira do que nunca, na esquina seguinte.

Esse oxigênio renovador e suas moléculas esfuziantes foi muito bem aproveitado por Alex Neoral e sua fantástica troupe, a Focus Cia. de Dança, na criação, produção e materialização de As canções que você dançou pra mim, estréia deste fim de semana no Sesc Copacabana.

Dois fatores marcantes fazem deste espetáculo algo totalmente novo na cena contemporânea. Primeiro, a apropriação absolutamente original da obra de Roberto Carlos, marcada por escolhas musicais mais que pertinentes, por uma edição de som irretocável e por uma criação coreográfica ao mesmo tempo centrada e explosiva, com seus eixos bem ancorados e uma movimentação cênica extasiante. E segundo, a constatação da força absoluta das canções que Roberto Carlos cantou pra mim, pra você, um pouco pra cada um e muito pra todo mundo, e que contagiam geração após geração – fenômeno que não tem, até hoje, paralelo em nossa música popular.

Alex Neoral e os seus souberam escolher, e como. Transformaram, incendiaram e subverteram com respeito, carinho, verdade. Nem Roberto Carlos, se lá estivesse, saberia dizer por que razão tudo mudou assim tão lindamente, tão fortemente, tão descompassadamente – na medida certa e absurda do ritmo, do recorte, da intensidade e da vontade.

Todas as escolhas do espetáculo são acertadas: o figurino quase sempre em degradês de azul e branco, o terno que é quase uma identidade do Rei, “defendido” por um Alex Neoral em plena forma e beleza, a luz precisa e surpreendente, o drama e a graça em cada rosto dos atores-bailarinos que emprestam seus corpos perfeitamente treinados a uma gama de emoções refinada e quase stanislawskiana. Coesão, qualidade, paixão, disposição para burlar a gravidade com ternura e graça, ora sobre cadeiras transparentes, ora sobre si mesmos ou no chão ou no ar, pelas escadas e áreas de circulação, entre infâncias e êxtases contínuos e facetados, numa corrente trepidante de comunicação com um público que dança com o inesperado que as antigas/novíssimas canções lhes oferecem, numa mais que régia homenagem.

Ousaria dizer que As canções que você dançou pra mim guarda, talvez, um forte quê do lendário Lecuona, do Grupo Corpo: é uma poderosa reviravolta de luz, de brilho, de traço sobre lembranças que são um pouco de todo mundo. Do período preciso da obra do Rei sobre o qual Alex Neoral se debruçou – entre 1960 e 1980 – o grupo evoca também as crenças, o estilo de viver, as grandes causas, a aproximação tátil com a plateia, o rompimento aparente dos limites entre atores e público e, sobretudo, a capacidade de arrastar todo mundo para um espaço espiritual/político/histórico comum, a comemorar o tempo vivido, o adivinhado e o esperado numa mesma freqüência.

Sobretudo depois de ter visto, recentemente, Roberto Carlos despir a fantasia no programa de Jô Soares, feliz por enfim se mostrar como é, tenho a maior certeza de que ele só tem motivos para se orgulhar, e muito, de As canções que você dançou pra mim.