sexta-feira, fevereiro 24, 2012

É ser feliz e mais nada

Foto: Marian Starosta - Divulgação


Juventude não é, nem nunca foi, um atributo que a pessoa tem ou não tem. Juventude é um período da vida; em certos casos, toda uma vida. Mas é inegável que há nela um tipo de oxigênio que não circula no corpo em qualquer outra época da existência. Em sua composição tem coragem, irreverência, um estado cândido de se equilibrar entre o impossível e o viável, numa tensão criadora permanente que respeita tudo e nada, que ri com a vida, chora com ela e ressurge, mais inteira do que nunca, na esquina seguinte.

Esse oxigênio renovador e suas moléculas esfuziantes foi muito bem aproveitado por Alex Neoral e sua fantástica troupe, a Focus Cia. de Dança, na criação, produção e materialização de As canções que você dançou pra mim, estréia deste fim de semana no Sesc Copacabana.

Dois fatores marcantes fazem deste espetáculo algo totalmente novo na cena contemporânea. Primeiro, a apropriação absolutamente original da obra de Roberto Carlos, marcada por escolhas musicais mais que pertinentes, por uma edição de som irretocável e por uma criação coreográfica ao mesmo tempo centrada e explosiva, com seus eixos bem ancorados e uma movimentação cênica extasiante. E segundo, a constatação da força absoluta das canções que Roberto Carlos cantou pra mim, pra você, um pouco pra cada um e muito pra todo mundo, e que contagiam geração após geração – fenômeno que não tem, até hoje, paralelo em nossa música popular.

Alex Neoral e os seus souberam escolher, e como. Transformaram, incendiaram e subverteram com respeito, carinho, verdade. Nem Roberto Carlos, se lá estivesse, saberia dizer por que razão tudo mudou assim tão lindamente, tão fortemente, tão descompassadamente – na medida certa e absurda do ritmo, do recorte, da intensidade e da vontade.

Todas as escolhas do espetáculo são acertadas: o figurino quase sempre em degradês de azul e branco, o terno que é quase uma identidade do Rei, “defendido” por um Alex Neoral em plena forma e beleza, a luz precisa e surpreendente, o drama e a graça em cada rosto dos atores-bailarinos que emprestam seus corpos perfeitamente treinados a uma gama de emoções refinada e quase stanislawskiana. Coesão, qualidade, paixão, disposição para burlar a gravidade com ternura e graça, ora sobre cadeiras transparentes, ora sobre si mesmos ou no chão ou no ar, pelas escadas e áreas de circulação, entre infâncias e êxtases contínuos e facetados, numa corrente trepidante de comunicação com um público que dança com o inesperado que as antigas/novíssimas canções lhes oferecem, numa mais que régia homenagem.

Ousaria dizer que As canções que você dançou pra mim guarda, talvez, um forte quê do lendário Lecuona, do Grupo Corpo: é uma poderosa reviravolta de luz, de brilho, de traço sobre lembranças que são um pouco de todo mundo. Do período preciso da obra do Rei sobre o qual Alex Neoral se debruçou – entre 1960 e 1980 – o grupo evoca também as crenças, o estilo de viver, as grandes causas, a aproximação tátil com a plateia, o rompimento aparente dos limites entre atores e público e, sobretudo, a capacidade de arrastar todo mundo para um espaço espiritual/político/histórico comum, a comemorar o tempo vivido, o adivinhado e o esperado numa mesma freqüência.

Sobretudo depois de ter visto, recentemente, Roberto Carlos despir a fantasia no programa de Jô Soares, feliz por enfim se mostrar como é, tenho a maior certeza de que ele só tem motivos para se orgulhar, e muito, de As canções que você dançou pra mim.