terça-feira, julho 16, 2013

Escadas, de Carmela Gross

 Foto: divulgação

- Eu me apego às exposições que acontecem aqui.
A frase da tímida estagiária de um badalado centro cultural do Rio ficou em mim, mornando, por muito tempo. Com a convivência, percebi que as palavras insistiam em me lembrar de certas coisas que são mesmo da minha natureza. Como admitir que eu também tenho essa incurável mania de me apegar à arte, e que me sinto bem com isso.
Como assessora de imprensa da Meio e Imagem Comunicação - cujo percurso é bastante ligado à arte contemporânea - tenho participado da divulgação de várias e distintas mostras de arte. Pesquiso, converso com artistas, produzo releases, acompanho inaugurações e entrevistas, tudo com grande prazer. Uma das grandes alegrias desse trabalho é ver que, em arte, tudo é diferente e há surpresas a toda hora, que quebram a rotina mental do trabalho e possibilitam outras viagens.
Escadas, de Carmela Gross, tem sido uma dessas experiências de prazer e êxtase, de descoberta profunda.  Escadas de luz que saem do corpo de sua função maquinal e assumem proporções que remetem a altitudes jamais alcançadas, ao inexplorado que se balouça irremediavelmente além de nós. Escadas que se desenham no ar com a delicadeza do neon, ainda que plantadas no solo por hastes metálicas e multidões de fios delgados, cintilantes.  Centenas de cobras jovens e metálicas se distribuem no chão de um aposento, com pleno espaço para incentivar no espectador a suprema audácia de caminhar entre elas. E vários tons explosivos das tragédias urbanas reunidos em movimento suave, num vídeo estarrecedor. Essa descrição das quatro obras que compõem a exposição - Escadas, Escada de Emergência, Répteis e Luz del Fuego (vídeo) - é apenas uma tentativa de aproximação com elas. Mas palavras não dão conta do seu impacto, da infinitude de detalhes que nos atravessam quando chegamos à Casa França-Brasil e nos deparamos com um cenário em que se impõe, primeiro, uma elegância exercida com firmeza; e, aos poucos, uma poética que se opera como uma infiltração de grandes proporções no nosso inconsciente anestesiado.
Há muitas camadas nesse conjunto representativo do trabalho recente da artista paulistana Carmela Gross. De forma bem básica, é fácil a gente se perguntar se uma escada é uma escada é uma escada - e chegar à possível conclusão de que uma escada pode ser tudo o que uma escada não é, ou tudo que é e mais alguma coisa. Iluminadas com lâmpadas fluorescentes brancas, as monumentais escadas que formam a obra homônima se estendem ao longo de toda a parede esquerda do vão central da Casa França-Brasil, rumo a sabe-se lá onde. Refletem-se delicadamente nos vidros das duas enormes portas laterais do aposento, uma que dá para a varanda próxima à Avenida Presidente Vargas e outra que dá para o grande átrio compartilhado com o Centro Cultural dos Correios. Os reflexos flertam com a ubiqüidade e nos enganam: dá pra jurar que há escadas (e luzes) do lado de fora, mas não. Se a gente olha pra cima, adivinha o que quiser: querubins, serafins, mais andares acima das nuvens, a cidade sagrada de Lhasa, no Tibet... Fica quase difícil nos reportarmos à história e constatar, como me explicou Carmela, que as escadas nasceram como máquinas de guerra. 
Desenhadas em neon no ar, uma vermelha e outra verde, as escadas de emergência são belos rabiscos de energia e convidam à saudade dos antigos cinemas e suas frases iluminadas. Sim, podemos nos imaginar subindo e abrindo, quem sabe, uma cortina bem grossa no final? 
Com cobras, em geral, não me entendo muito bem, mas devo admitir que essas me parecem mansinhas e me acalmam. Não, não me atrevo a cruzar os seus domínios, mas circulo em volta com tranquilidade, admirando sua beleza enquanto objetos.
Luz del Fuego, o vídeo, suscitou duas leituras muito diferentes. As imagens de jornal, todas envolvendo situações de fogo, coletadas por Carmela ao longo de muito tempo, são editadas como cinema europeu; fundem-se lentas, compassadas, criando uma experiência estética e emocional irrespirável, em que se misturam a plasticidade das chamas e a impotência diante da inevitabilidade dos conflitos diários do nosso tempo - ônibus incendiados, atentados, disputas ideológicas, guerras. 
Aqui cabe um parêntese: a mostra Escadas foi inaugurada em 4 de junho - antes, portanto, do recente #vemprarua que estamos vivendo, com todo o ânimo e a preocupação entrelaçados. Mas como a arte está sempre à frente do tempo, foi inevitável voltar lá e apreciar o vídeo novamente, à luz da realidade que explode nos telejornais. 
O lento e compassado tornou-se, a meu ver, ainda mais lento e mais compassado, ainda mais inevitável. Não foi possível olhar para aquelas imagens como fatos passados: a perspectiva da lente se ajustou automaticamente e o peso foi crescendo, crescendo, a ponto de ficar quase insuportável. Só a arte mesmo para nos defrontar com a nossa responsabilidade para com o hoje em que vivemos. E só ela tem força para nos dizer o que precisamos fazer, o que é urgente fazer.

Escadas, de Carmela Gross, está em cartaz na Casa França-Brasil até 28 de julho, de terça a domingo, das 10 às 20 horas. Um plus luxuoso no dia 20/7, às 16 horas, será a mesa-redonda comandada por Carmela Gross, com participação da historiadora de arte Cecília Cotrim e mediada pelo crítico de arte Felipe Scovino. Para tudo isso, a entrada é franca. A Casa França-Brasil fica na rua Visconde de Itaboraí, 78, no Centro do Rio (bem ao lado do CCBB e do Centro Cultural dos Correios).